Santuário: quantas vidas cabem em uma cidadezinha?
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Entramos em Santuário (Macabéa, 2020) embalados pela música de Dona Ivone Lara. É dela a epígrafe do quinto livro de Maya Falks, cujo título faz referência à cidade onde se passam os contos. Seguimos no passeio guiado pelas ruas do povoado, mas, diferente do que propõe o turismo tradicional, nossas andanças começam por dentro das casas e da intimidade de seus moradores. O ritmo animado do samba “Andei para Curimá” que nos abre as portas do lugarejo não esconde o clamor fiel d


"Ainda que a terra se abra" – é hora de voltar para casa
Oito anos após deixar a residência paterna no sul do país em direção ao trabalho de professor universitário em Brasília, carregando nas costas o impacto de um acidente familiar que custou a vida de sua mãe, Martín regressa por circunstâncias não menos trágicas: a morte do pai. Mesmo que não seja uma grande novidade para a literatura a premissa de forte carga alegórica do filho que retorna ao lar de origem e tem de encarar a conturbada imagem patriarcal, Ainda que a terra se a


Maria Altamira: por uma identidade brasileira indígena e latino-americana
“Uma história começa em qualquer lugar e em qualquer momento. Há sempre algo que entrelaça de tal maneira as histórias do mundo e as de cada um de nós que o começo depende apenas do ponto de vista pelo qual você escolhe ver e desembaralhar os nós, as malhas, os vazios”. A história de onde vem o trecho anterior é Maria Altamira (Editora Instante, 2020), dedicada ao povo Yudjá de Volta Grande do Xingu e aos beiradeiros de Altamira — e começa pelo desastre. Alelí perde toda a fa


Pluralidade e desmistificação na literatura do moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa
Quando fala sobre os perigos da história única¹, Chimamanda Ngozi Adichie aponta como um de seus efeitos a criação de estereótipos, definições incompletas que não dão conta de abarcar a complexidade do que descrevem. Discursos históricos que tendem ao maniqueísmo, demarcando em relevo os polos positivo e negativo onde cada coisa é categoricamente fixada, além das imagens chapadas criam outras ameaças: os mitos. Homens e mulheres transformam-se em paladinos ou algozes, datas v


Uma leitura astroecológica de "Sobre os ossos dos mortos"
“Com a minha idade e nas minhas condições atuais, deveria sempre lavar bem os pés antes de dormir, caso uma ambulância precise vir me buscar à noite.” Desse modo Olga Tokarczuk, uma das últimas ganhadoras do Nobel de literatura, abre o romance Sobre os ossos dos mortos (Todavia, 2019, trad. Olga Bagińska-Shinzato). O parágrafo inicial é intrigante por si só, e sua potência reverbera conforme identificamos nele certas cismas constantes da narradora no decorrer da obra. A prota


O tradutor é um fingidor em "Estação Atocha" de Ben Lerner
Adam Gordon é um jovem narrador metódico, irritadiço e inquieto. Estudante estadunidense, cumpre intercâmbio na Espanha, onde busca concluir uma pesquisa em tradução. Apesar de bolsista em uma boa universidade, o que conferiria certa qualidade ao seu projeto, desde o começo da narrativa trata de suas próprias produções como um “suposto” talento literário, nada realmente tão bom ou especialmente autêntico. Não esconde os comprimidos brancos e toda a sorte de remédios e drogas


De "Marrom e amarelo" ressoa a pergunta: quem é o branco no Brasil?
Entre os romances nacionais publicados em 2019, Marrom e amarelo recebeu especial atenção de leitores e da crítica literária. Esse tipo de reação sempre me instiga a desvendar o que pode haver de tão comunitário em uma obra de ficção para que ela seja acolhida com tamanha unanimidade pelo público, ultrapassando o quase-sempre-mesmo círculo de resenhistas de grandes veículos e chegando efetivamente ao chamado “leitor-comum”. No caso do mais novo livro de Paulo Scott, me parece


"Alguns humanos" de Gustavo Pacheco, taxidermista das palavras
Se há uma diferença primordial entre animal e humano, esta diferença é a capacidade de imaginar. O ser humano pode desenvolver hipóteses, criar outros mundos possíveis e apresentá-los, contar histórias, inventar, deixar-se levar ou não pelo desejo e, tendo de lidar com as inevitáveis imprecisões dessas habilidades, é formado por inconsistências. Até onde sabemos, entre todas as espécies e reinos, tais competências são exclusivamente nossas. Mas como nossa tão limitada linguag

Belhell e a literatura-cassino de Edyr Augusto
Cinco anos depois do lançamento do aclamado Pssica (2015), Edyr Augusto publica Belhell (2020), mais um romance editado pela Boitempo. Ainda ambientado no crime e na violência belenenses, Belhell concebe uma intriga que engloba três protagonistas, Gil, Paula e Marollo, articulados pelo entremeio de coadjuvantes com trajetórias igualmente eletrizantes e decisivas ao andamento do enredo. Como no romance anterior, suas histórias se encadeiam de modo inevidente, comprovando a ast


Tomar decisões no calor da hora — antes que elas sejam tomadas de você
Um homem se masturba no transporte público, é flagrado e espancado por outros passageiros e volta para casa, onde admite seu crime à mulher. Essa mulher é Mônica, que no início da narrativa está se arrumando para jantar quando tem a vida interrompida pelo tipo de informação que ninguém jamais pensa em receber. Geralmente, as notícias que veiculam situações como essa concentram-se na figura do assediador ou das pessoas assediadas, dificilmente se interessam pelos personagens s


OS MELHORES LIVROS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS QUE LI EM 2019
Dos 96 livros que li no ano passado, 46 foram escritos por autores brasileiros que escrevem hoje. Um número tão considerável quanto esse é a primeira das razões que me levaram a criar uma seleção exclusiva para minhas melhores leituras nacionais contemporâneas – o que significa que a lista abaixo não está restrita a livros publicados em 2019, e sim aos que li neste ano. Meus critérios foram muito pessoais: considerei livros que tenham me impressionado com suas formas, premiss


A animalização do humano pela ausência do animal em A VEGETARIANA
“Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano”. Assim tem início o ganhador do Man Booker International Prize 2016, A vegetariana. Dividida em três partes narradas por vozes distintas, a primeira seção da novela é homônima ao livro e tem como narrador o marido de Yeonghye, mulher banal que, assaltada por sonhos tenebrosos envolvendo sangue, carne crua e labirintos assustadores, resolve parar de comer quaisquer pr


A VELOCIDADE DA LUZ: romance e estudo do romance
Quando se trata de contar histórias, tem menos valor o que é contado do que como contar. Sendo o autor um sujeito que organiza pela linguagem o mundo que se dispõe a narrar, é essencial que ele leve em consideração todos os meios possíveis para expor suas fabulações e, diante das várias alternativas, opte por aquela que torne seu relato algo digno de ser lido. Isso se aplica a todas as categorias de arte que possam transmitir uma mensagem (o cinema, a fotografia, o desenho, a
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