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Uma leitura astroecológica de "Sobre os ossos dos mortos"





“Com a minha idade e nas minhas condições atuais, deveria sempre lavar bem os pés antes de dormir, caso uma ambulância precise vir me buscar à noite.” Desse modo Olga Tokarczuk, uma das últimas ganhadoras do Nobel de literatura, abre o romance Sobre os ossos dos mortos (Todavia, 2019, trad. Olga Bagińska-Shinzato). O parágrafo inicial é intrigante por si só, e sua potência reverbera conforme identificamos nele certas cismas constantes da narradora no decorrer da obra. A protagonista encucada com pés e pressentida da morte é a sra. Dusheiko, idosa que vive em uma região fria da Polônia, próxima a República Tchecha, para onde, segundo ela, o sol fugiria depois de assistir aos horrores desse vilarejo sem nome oficial. A inexistência de alcunha ao lugarejo, aliás, é bastante propícia à localização de uma personagem que abomina nomenclaturas burocráticas – ela detesta seu prenome e trata quase todas as pessoas por apelidos inspirados pelos sentimentos que lhe causam. Assim é que, certa noite, Esquisito bate à sua porta para avisar que Pé Grande, o vizinho deles, havia morrido. Essa é a primeira de uma série de mortes de homens envolvidos com a caça (legal e ilegal) naquela área, atividade tão amplamente praticada nos arredores quanto repudiada pela sra. Dusheiko, defensora declarada da causa animal. Levando a sério a máxima de que um dia todo caçador vira caça, ela passa a acreditar e a defender que os óbitos são resultado da vingança dos animais às atrocidades dos humanos.


Isso é o que ela tenta provar enquanto conta os passos da investigação policial que ganha espaço no povoado. O clima soturno do lugar e dos eventos contrasta com o humor espirituoso da narradora. Não que a senhora Dusheiko seja exatamente feliz, pelo contrário, a solidão que a acompanha também a embebe de tristeza, mas ainda assim a ex-engenheira de pontes consegue manter seu relato muito bem-humorado por meio de manifestações inusitadas que parecem emergir espontaneamente de sua própria natureza, encaminhadas por uma inocência combativa inconfundível. Tudo isso cede à narrativa um aspecto de equilíbrio xadrez, sóbrio mas prazenteiro, solicitando descontraidamente a participação atenta do leitor a cada mínimo movimento da partida. A própria protagonista se dedica bastante aos detalhes, uma atenção que se reflete e justifica em seu interesse pelos astros.


A astrologia para a senhora Dusheiko é capaz de explicar não o inexplicável, mas aquilo que por várias razões se apresenta inacessível. Ela acredita que “o mundo é uma grande rede, um todo único, e não existe nada que esteja isolado”, e nesse sentido é como se sua narrativa construísse um grande mapa astral dos acontecimentos – o que não significa que seja necessário conhecer nem acreditar na ciência dos astros para compreender ou mesmo gostar da narrativa. No entanto, uma vez que os estudos astrológicos são fundamentais à formação da protagonista, que organiza o mundo e atua nele tendo como base a crença, praticamente panteísta, na associação inescapável entre todos os elementos do universo, conhecer a lógica básica da astrologia é de alta valia a qualquer leitura que propõe desvendar o narrado. E se o grande está sempre contido no pequeno, como ela defende, seria instintivo que em cada descrição, em cada escolha de palavras da narradora, estivessem traços do todo que ela pretende projetar. Assim, não só cada peça do entorno, principalmente da geografia orgânica a seu redor, influi sobre a personagem tal qual um campo magnético, mas também o seu texto vem carregado de indícios semânticos e morfológicos, muitos deles facilmente reconhecíveis pela frequência com que são retomados por ela como pequenas obsessões temáticas, formando uma camada de subtexto que só se decifra enquanto constelação. Diante dessa constatação, talvez seja natural, de maneira inevitável, promover uma leitura astrológica da obra – chave de acesso que a própria senhora Dusheiko oferece aos leitores:


É preciso manter os olhos e ouvidos abertos, associar os fatos, enxergar a semelhança lá onde outros veem uma completa discrepância, lembrar que certos acontecimentos ocorrem em vários níveis ou, em outras palavras: muitos incidentes são aspectos do mesmo acontecimento. E que o mundo é uma grande rede, é um todo único, e não existe nada que esteja isolado. Cada fragmento do mundo, até o menor deles, está interligado com os outros através de um complexo cosmos de correspondências, onde uma mente simplória dificilmente penetra. (p. 59)

Das fixações que insistem em saltar de seus enunciados, algumas se destacam. Talvez a mais imediata seja pelos ossos, presentes já no título do romance (retirado de um poema do romântico William Blake), no qual a partícula “sobre” pode tanto definir um limite concreto no espaço, localizando a trama em cima da ossatura dos mortos – sejam eles humanos, em referência alegórica à história dos campos de concentração poloneses e aos próprios homens que morrem no decorrer do romance, ou animais – quanto indicar os ossos como matéria narrativa de Dusheiko; ambas as possibilidades se sustentam. A ira, mais uma das exposições recorrentes no livro, é descrita pela protagonista como uma espécie de lucidez transformadora, de onde deriva toda a sabedoria e clarividência necessárias para agir com firmeza. As afirmações de que o mundo não foi feito para os seres humanos e só são sadios aqueles que sofrem também fazem parte do rol de repetições da senhora Dusheiko, assim como suas moléstias de origem desconhecida, que têm como um dos efeitos a abundância de lágrimas. Longe de nublar seu olhar, o pranto incontrolável o desanuvia, presenteando-a com uma visão panorâmica e nítida das coisas, especialmente da natureza. A perspectiva cristalina pela qual a protagonista lê o mundo natural a aproxima dos seres vivos não-humanos, viabilizando uma comunicação aprofundada pela sensibilidade dessa narradora vegetariana. Indignada e revoltada com as leis especistas que institucionalizam a violência contra os animais, oficializam uma suposta superioridade humana que não se confirma na realidade e denunciam a farsa do senso de justiça que norteia a democracia ocidental, a senhora Dusheiko não vê outra escolha além de se colocar no lugar dos animais, mesmo que ao fazer isso seja taxada de histérica – e não é esse um dos mais arraigados estereótipos da mulher idosa?


Ouso dizer: lamentavelmente, não sou uma boa astróloga. Há uma falha no meu caráter que obscurece a imagem do posicionamento dos planetas. Olho para eles através do meu medo e apesar da aparência alegre que as pessoas, ingênua e simploriamente, me atribuem, vejo tudo como num escuro espelho, como se através de um vidro fumê. Olho para o mundo da mesma forma que os outros olham para o eclipse do Sol. É assim que eu vejo a Terra eclipsada. Vejo como nos movemos cegamente na penumbra eterna, como melolontas presas numa caixa por uma criança cruel. É fácil nos machucar e nos ferir, quebrar em pedaços nossa existência intricada e bizarra. Percebo tudo como anormal, horrível e perigoso. Vejo apenas catástrofes. Mas se a queda constitui o início, há como cair mais fundo? (p. 61)

Ainda que possa soar pessimista, o desgosto da personagem em relação ao mundo é menos derrotista e muito mais mobilizador, na medida em que funciona como impulso para tomar coragem e enfrentar homens poderosos, símbolos de autoridade e instituições corruptíveis que atentam contra o que ela considera importante. Divertida, corajosa e determinada, a narradora de Sobre os ossos dos mortos é sem dúvidas o esplendor desse chamado thriller ecológico que, como bem dito por Raquel Carneiro¹, substitui a premissa do “quem matou?” que conduz as narrativas do gênero pelo “quem tem ou não o direito de matar?”, ou ainda “quem define, no jogo da vida, a espécie humana como superior às demais?”, dessa forma acrescendo à sua classificação mais um atributo: o filosófico. E porque a obra não faz do especismo, da astrologia, do vegetarianismo, do ectarismo e do feminismo razões primárias que se sobrepõem à narrativa literária, mas os desponta como preocupações que atravessam a subjetividade da protagonista, e portanto como elementos de constituição psicológica e de desenvolvimento do enredo romanesco, não pode ser qualificada como panfletária sem que tal acusação recaia em arbitrariedade.


Assim se faz o romance de Olga Tokarczuk, como um registro espirituoso e irado de uma protagonista formidável, genial nas descrições de personagens e cenários, que desarranja as fronteiras hierárquicas entre seres humanos e natureza, as divisões injustas que colocam aqueles acima desta e assim outorgam a normatização do abuso contra os animais. Deslocando-os da condição de vítimas passivas e invisibilizadas à de focalizados, a autora polonesa corretivamente os posiciona na alçada de protagonistas, parcela significativa da História, e revela que no que tange à causa animal, os seres humanos teoricamente civilizados muitas vezes são as verdadeiras bestas.



Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:



 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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