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Escrever a interrupção do indesejado: "O Acontecimento" e "Dezessete Anos"




Em 1963, quando tinha 23 anos, a então estudante de Letras Annie Ernaux decide interromper uma gravidez indesejada. Numa época em que o aborto era criminalizado na França, a escritora francesa passa por ele num modo de clandestinidade que a submete a uma série de violências morais e físicas incompartilháveis naquelas circunstâncias. Quarenta anos mais tarde, ela escreve O Acontecimento (Fósforo, 2022, trad. Isadora de Araújo Pontes), um relato lúcido como só a distância temporal permite se produzir sobre uma experiência tão abaladora.


A situação desperta na jovem Ernaux a compreensão inédita da diferença de habitar um corpo de mulher em contraponto ao corpo masculino. Até então, “no amor e no gozo, não me sentia um corpo intrinsecamente diferente do corpo dos homens”, ela diz. Quando engravida, sua existência passa a ser uma corrida contra o relógio, enquanto o próprio tempo é gestado em si à sua revelia. Conforme esse tempo avança, e junto dele se acumulam julgamentos morais de distintas fontes, a moça anota em seus diários alguns apontamentos, criando rastros que, quatro décadas depois, servirão como base para o livro. Novamente a autora toma em sua obra literária o valor inestimável da memória material, encarnada em registros imediatos e originalmente despretensiosos, para o acesso daquilo que, uma vez vivido, nunca mais se alcança por completo. Mas a tentativa de resgate e a reformulação da experiência em matéria criativa são poderosas a ponto de livrá-la de uma culpa oblíqua que a acompanha pelos anos que separam o acontecimento de sua escrita. A intenção inicial, ela afirma, era apenas testar o desejo de escrever sobre isso, uma vez que seria impossível reencontrar o que quer que fosse do passado – é sempre um outro o que vive na memória. O resultado, porém, ultrapassa o mero experimento, porque faz nascer do acontecimento algo que lhe dá sentido: a narrativa.


Uma vez que “ver pela imaginação ou rever pela memória é a parte que cabe à escrita”, Ernaux reexperimenta o acontecido no ato de narrar, num contexto essencialmente distinto daquele em que tudo se deu, especialmente porque escreve fora da ilicitude, despojando-o de boa parte do peso que antes o oprimia e tornando finalmente factível o enfrentamento da realidade desse “acontecimento inesquecível”. No entanto, mesmo em uma posição exterior à da clandestinidade de outrora, a autora evita o termo aborto, tratando-o por acontecimento, como se dissesse respeito a algo sem lugar na linguagem, uma ação contínua que não se converte exatamente em palavra porque não há termo que dê conta de descrevê-la com a justeza devida. Tal impossibilidade de alcançar verbalmente a dimensão do sucedido provoca análises recorrentes de sua escritura enquanto ela é feita, no próprio corpo do texto, observações que representam a intenção autoral de obter êxito em transmitir narrativamente o vivido, por mais inconcebível que tenha sido, sobretudo porque, para Ernaux, essa transmissão é a razão não só de sua atividade escritora, mas de toda a sua vida: “Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros”.


Duas décadas se passam e, em 1984, é a vez de Colombe Scheck vivenciar um aborto. Sua transição da adolescência para a fase adulta é marcada por uma gravidez acidental silenciada por quase trinta anos, ocultamento suspenso pelo livro Dezessete Anos (Relicário, 2023, trad. Isadora Pontes e Laura Campos), originalmente publicado em 2015 e em franco diálogo com O Acontecimento. “Nem minha família, nem meus amigos mais próximos sabem o que me aconteceu durante a primavera de 1984. Vergonha, constrangimento, tristeza... Nunca contei como, acidentalmente, adentrei no mundo dos adultos”, a jornalista francesa escreve no início do relato. A ênfase à idade que possuía quando realiza o procedimento não é um acaso: a percepção definitiva do seu corpo de mulher, um corpo que pode roubar a autonomia do sujeito, chega justamente aos dezessete, quando ela está pronta para abraçar o mundo e então é abatida pelo entendimento de que não há liberdade total em um corpo feminino, essa espécie de armadilha fisiológica sobre a qual ninguém discute.


O silêncio que ronda o aborto nas artes incomoda as duas escritoras, que têm acesso a diversos livros eróticos e, apesar disso, quase nada encontram sobre o tema. Nas raras vezes em que aparece na literatura lida por elas, o aborto é elipsado, escamoteado, interditado até mesmo no discurso. De fato, como escreve Schneck, “o aborto não é um belo tema literário. É uma guerra que se atravessa, entre vida e morte, humilhação, vergonha e lamento”. No entanto, ou talvez exatamente por isso, elas sentem que é preciso romper com o silenciamento que recai sobre ele, jogar luz sobre a história oculta de mulheres reais que o enfrentaram, seguem e seguirão enfrentando. Ernaux acredita que se “não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo”. Escrever sobre a gravidez interrompida afeta não apenas quem passou por isso, mas, em alguma medida, todos os interlocutores arrastados para a visão estarrecedora do real que esse tipo de relato oferece e a própria estrutura que sustenta o apagamento dessas vivências.


Uma distinção primordial entre os livros de Ernaux e Schneck é que o primeiro narra a experiência antes e o segundo, depois da descriminalização do aborto na França. Realizá-lo sob a legalidade sem dúvidas poupa a autora mais jovem de umas tantas agressões físicas e psicológicas inescapáveis na década de 1960, advindas inclusive da classe médica conservadora. Mesmo assim, a experiência, obviamente, não deixa de ser terrível para a jovem dos anos 1980. Como disse a ministra da Saúde Simone Veil em seu discurso na Assembleia Nacional francesa, colocando em votação a legalização do procedimento, “o aborto é e sempre será um drama”, ainda que graças à lei ele não seja (ou, ao menos, não deva ser) mais o resultado de horas cruéis de maus-tratos, sangue, medo, humilhação e desprezo. Nesse sentido, soa impossível tratar do aborto sem tratar de classe, e as narrativas reforçam essa impressão, uma vez que as duas autoras colocam a questão em perspectiva. Apesar de ainda adolescente, Schneck faz parte de uma família de classe média privilegiada – que, embora nunca fale diretamente sobre o assunto, não se opõe à sua escolha de interromper a gravidez – e dispõe de certa estabilidade financeira imprescindível para se recuperar de uma intervenção muito menos traumática que a de Ernaux, que à época morava num alojamento para estudantes e não tinha meios para se bancar propriamente, vivendo sob o risco de ter o seu futuro completamente comprometido por uma maternidade indesejada naquele momento. Ela chega a relacionar a gravidez ao fracasso social, dizendo que “estabelecia confusamente uma ligação entre minha classe social de origem e o que estava acontecendo comigo. [...] Eu estava ferrada, e o que crescia em mim era, de certa maneira, o fracasso social”. Se buscarmos um paralelo com a realidade brasileira, a questão de classe também cruza diretamente a experiência do aborto. Embora criminalizado no Brasil, a Pesquisa Nacional do Aborto mostra que 1 em cada 7 mulheres no país já abortou, e os casos de morte são muito mais recorrentes entre a população pobre que o faz sem os mínimos critérios de segurança – daí a importância de que livros como O Acontecimento, Dezessete Anos e Uma Lei Para a História (o discurso completo de Simone Veil, publicado pela editora Bazar do Tempo com tradução de Julia Vidile) sejam enfim disponibilizados no país, de modo a promover a conscientização do aborto como um fato que se consuma a despeito de sua proibição, atravessando o corpo social brasileiro em muitas camadas.



Ainda sobre a dimensão subjetiva dos relatos, é curioso como Ernaux e Schneck se aprofundam em suas figuras maternas ao escrever sobre o acontecimento. Há em ambas um desejo ou uma predisposição de não ser como suas mães, não seguir a solidão da maternidade que enxergam nelas. As vivências como filhas influem diretamente sobre suas interrupções gestacionais, sobre a escolha pelo aborto e a maneira de lidar com ela, como se acontecesse, dentro de cada uma, o assassinato simbólico da mãe quando o procedimento ocorre. No caso de Dezessete Anos, também o pai é uma presença especialmente importante, mas num sentido oposto. Enquanto a mãe de Schneck não vai à clínica nem fala com a filha sobre o que aconteceu naquele dia, nem antes nem depois, a figura paterna dialoga mais com a protagonista, sendo, inclusive, a quem a autora dedica o livro. A filiação, portanto, é um ponto central nas experiências das duas, ainda que tenham acontecido em tempos e circunstâncias tão distantes.


Em relação às consequências do acontecimento e sua permanência no imaginário dessas mulheres, se por um lado Ernaux defende que “não valia a pena dar um nome para algo ao qual eu tinha decidido dar um fim”, por outro lado Schneck opta por chamar o embrião de “o ausente”, aproveitando as possibilidades criativas do fazer literário para transvertê-lo em interlocutor e, com isso, em certa medida alcançar alguma redenção, um alívio da culpa e da vergonha que sentia por ter passado por tudo aquilo aos dezessete anos, sentimentos que se esvaem quando colocados em texto. De qualquer forma, considerando todas as particularidades das experiências de cada escritora, há algo que elas compartilham: a certeza de que o aborto lhes garantiu um futuro e as preparou para serem mães quando essa possibilidade foi não uma imposição, mas uma escolha.


Ao escrever sobre o aborto, elas combinam a dimensão individual e a dimensão coletiva do acontecimento, ao mesmo tempo que fazem da arte um campo de acolhimento para uma realidade que em geral se busca esconder. Ernaux e Schnek publicizam suas intimidades e, com isso, fazem do livro um espaço público propício à discussão de questões sociais importantes, alçadas à comunidade por uma abordagem de cunho pessoal que legitima o debate sem perder de vista a qualidade estética que transforma o vivido em literatura.


Assista ao vídeo sobre os livros no canal do LiteraTamy:


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Foto de Tamy Ghannam

Tamlyn Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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