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"Verão" e os caminhos das verdades indesejadas — o primeiro romance de Veronica Botelho




Tudo começa no verão de 1998. A protagonista do primeiro romance da piauiense Veronica Botelho, Verão (e-galáxia, 2023), é Rebecca, uma jovem criada pelos tios depois da morte precoce do pai, um homem branco, e do distanciamento da mãe, uma mulher negra, que muito cedo praticamente desaparece da vida da filha. Uma bruma envolve suas origens, sua infância, a ausência materna e o acidente que a deixou órfã da figura paterna, e as tendências questionadoras e inconformadas da personagem, junto da construção narrativa que mescla diferentes tempos no romance, prolongam o mistério que caracteriza o volume inicial da tetralogia “As estações”.

 

A insistência da família em guardar segredos sobre o passado de Rebecca faz com que ela seja um produto direto da insciência de si, sentindo-se sempre como uma intrusa no seio familiar. Para evitar que esse mesmo desconhecimento — espécie de descontrole sobre a própria história — se repita no futuro, a protagonista toma as rédeas de sua existência e, assim que surge a oportunidade, vai embora sem grandes dificuldades. Sua movimentação por diferentes cantos do Brasil, da Itália e da Catalunha, é descrita numa prosa não-linear, passeando livremente pelo tempo como a personagem passeia pelo espaço, de modo a revelar as coisas nos momentos mais oportunos para que as incógnitas sustentem as tensões principais do romance. Vagarosa mas obstinada, Rebecca persegue verdades que depois se arrepende de descobrir.


Parte de seu impulso em direção a novas localidades vem do desejo de viver num lugar onde as quatro estações do ano sejam bem definidas — o que não acontece no Brasil, seu país natal —, buscando no exterior o escape à indefinição incontornável que paira sobre sua interioridade. Rebecca detesta especialmente o verão, que provoca nela uma vontade de fugir, e é justamente nessa estação que Botelho localiza sua personagem, levando-a a lidar com o desconforto climático como quem enfrenta emoções indesejadas, mas inescapáveis: é preciso passar por elas, por mais desconfortáveis que possam ser, e procurar fazer as pazes com sua inevitabilidade.

 

A identidade mestiça de Rebecca motiva a discussão do colorismo no romance. Mulher negra de pele clara criada pela família branca de classe média, ela frequenta espaços nos quais muitas vezes é a única pessoa não-branca em posição de não-subserviência. Suas características fenotípicas contribuem para a perenidade da sensação de deslocamento que a acompanha em todos os lugares — principalmente no Brasil, onde o preconceito racial parece ocorrer com maior regularidade e mais passabilidade do que nos demais países pelos quais a protagonista transita. Além de situações pontuais como essas, o racismo também a oprime sutil, mas intensamente, por grande parte da vida, afetando sua relação com a mãe, por exemplo, em camadas que só são compreendidas com o avançar da trama e da consequente conscientização da personagem sobre si.

 

Neste ponto, os relacionamentos entre mulheres como âncora da identidade de cada uma têm um papel importante no livro, sobretudo as relações de amizade, que Rebecca cria com alguma facilidade; primeiro, uma amizade inesperada começa num ônibus de viagem e perdura; depois, outras três mulheres de diferentes nacionalidades tornam-se suas amigas em Florença, onde passam a viver juntas, permanecendo unidas por um longo tempo sob o signo do estrangeirismo que aproxima todas elas, originalmente tão distantes. Essas interações serão fundamentais para os processos de descoberta no romance e para a construção de um sentido de pertencimento que o círculo sanguíneo não pode proporcionar.

 

Merece destaque a exploração narrativa das ligações que existem entre os espaços e os sentimentos despertados por eles, algo que se vê, obviamente, na trajetória de Rebecca, mas que também se imprime na experiência de Veronica Botelho enquanto escritora que, desde criança, vive entre-lugares (atualmente entre a Serra Fluminense, no Brasil, e Cadaqués, na Catalunha). Habituada às mudanças espaciais que fazem dela uma forasteira em toda parte, ao mesmo tempo que convertem cada esquina do mundo em casa, a autora descreve os trânsitos da protagonista com impressionante naturalidade, inclusive as transições linguísticas, que também entram em pauta na forma de viver da personagem. A questão idiomática está representada no livro de diversas maneiras, sobressaindo nos diálogos em italiano (com a subsequente tradução) que, quebrando o fluxo do texto em português, geram em quem lê um estranhamento semelhante àquele que compartilham os estrangeiros como Rebecca.

 

Como primeiro de uma série de quatro livros, Verão tem ares de thriller sem afastar-se do caráter ordinário da comum existência humana, na qual por vezes a ignorância é uma benção, e se apresenta como porta de entrada promissora a uma história que ainda tem muito o que contar. Numa prosa leve que se esgueira por vielas e estradas inusitadas, o romance se abre à percepção de que, por maior que seja o desejo de esgueirar-se dos conflitos e muitas sejam as rotas de fuga, do que foi vivido ninguém escapa.


>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


Assista à entrevista com a autora no canal do LiteraTamy:


 
Foto de Tamy Ghannam

Tamlyn Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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