E se, depois de morrermos, pudéssemos retornar à mesma vida e alterar algumas de nossas ações do passado? Essa é a premissa de Como não morrer de uma só vez (Mondru, 2023), primeiro romance do ator, diretor e dramaturgo carioca Gustavo Vaz. O protagonista Walter, deitado sobre o Sol e arrependido do suicídio cometido, se vê disposto a enfrentar uma espécie de eterno retorno nietzscheano para reviver sua existência, com a vantagem de poder retomar o controle total do próprio corpo em três situações à sua escolha. A intenção ao realizar esse pacto com o Nada – entidade ou ideia que não se manifesta diretamente na narrativa, embora entre em acordo com o personagem – é encontrar sentido para o que ele foi e, quem sabe, construir algo relevante a partir disso, com a condição um tanto existencialista de ser a consciência de si mesmo, estando sem estar.
A narrativa, portanto, parte da morte e da ideia de finitude para lançar um olhar agudo sobre a vida que a contém. Do prólogo que narra o instante em que o protagonista se prepara para reviver, a narrativa avança não para o renascimento de Walter, mas para a sua pré-concepção, em dois capítulos divertidos e simbólicos nos quais se imagina a trajetória anterior do espermatozoide e do óvulo que o originarão. A ansiedade, sua eterna companheira, já se faz presente aí, propondo que aquilo que somos subjetivamente começa a ser definido antes mesmo de que sejamos concebidos biologicamente. Chama atenção como, num primeiro e longo momento, o corpo e a consciência de Walter são categorias distintas: a consciência, embora ligada a ele, não tem atuação nenhuma sobre o corpo, que, por sua vez, desconhece a presença dessa suprainstância fadada a viver num déjà-vu aparentemente infinito, experimentando novamente a quebra das ilusões e a sucessiva aquisição de sentidos dos elementos que constituem o personagem principal do romance. Conforme o livro avança, essa diferença vai diminuindo, até que consciência e corpo passam à indiferenciação, e à primeira e à segunda versão de Walter soma-se uma terceira, que seria o produto do encontro daquelas outras duas. No fim das contas, Walter Freitas Galego se faz um homem relativamente novo graças ao trato com o Nada.
Em todo caso, tornar-se quem se é passa por uma série de perdas. A primeira perda de Walter, e a mais marcante de toda a sua vida, é a materna. Voltar a viver faz com que ele seja capaz de sentir e, pior, reter a sensação de experimentar intrauterinamente o ódio absoluto da mãe pelo filho. Ela o abandona quando ele ainda é um bebê, e os poucos momentos que passam juntos são alguns dos mais emocionantes da obra, ainda que haja várias outras cenas também muito comoventes. Tudo o que acontece entre ela, Ivone, e o pai, Nelson, vai despertando no protagonista um desejo faminto de vingança em relação ao pai, que ele culpabiliza pela partida materna. Tal responsabilidade e as problemáticas pessoais dos personagens estabelecem entre eles uma relação conflituosa pelo resto da vida, sobretudo porque Walter enxerga muito de Nelson em si e não consegue estar de bem com isso. Em certo momento, ele chega a dizer: “Minha ressureição, eu me cobro, não tem como objetivo apenas encontrar algum real sentido sobre a vida que tive, nem somente construir e deixar algo relevante no mundo, mas também resolver em mim a presença do homem terrível que sustenta cada célula minha. É dele que se trata. É sobre nós. É sobre justiça.” (p. 257) Seu relacionamento com os pais, portanto, é pautado pela violência – embora cada um deles provoque agressões diferentes –, e essa hostilidade fundante assombra as relações de Walter com outras pessoas de modo até incontrolável. Ter a violência como signo de fundação do eu dificulta o processo de livrar-se dela sem aniquilar a si mesmo, e permite que a narrativa escancare os efeitos das estruturas violentas que formam os homens, sobretudo na ausência de uma referência feminina em que se fiar.
Mesmo acreditando-se incapaz de sentir o amor, pela falta de vocabulário afetivo e pela ausência de indícios de carinho em sua formação – e não porque eles não existissem, mas porque as perversidades do abandono e da violência sobrepunham-se sensorialmente às manifestações de afeição –, há muito afeto na vida de Walter, até com o próprio pai; eles compartilham momentos e elementos de conexão marcantes nas duas existências do personagem, como a música e a paixão pelo Vasco, por exemplo. O avô paterno é mais uma figura indispensável para se pensar o amor; é da relação dos dois que vem o título do livro. Outras, como o vizinho Mathias, a cuidadora Dalva e a namorada Teresa, também cruzam afetos com ele, de modo que, embora a maneira com que foi educado – ou não-educado – sentimentalmente defina consideravelmente as formas de sentir do protagonista no futuro, ainda há lugar para que o amor seja ao menos considerado e aprendido pelo personagem.
Cada capítulo do romance conta um ano da nova vida, e muitas vezes a cena cultural e política das décadas é mencionada como bastidor das situações, que geralmente ocorrem no ambiente familiar, no espaço doméstico e seu entorno. O espaço é um elemento importante para contar a história de Walter e, mesmo se deixa o perímetro do lar, ainda assim as referências que ele reconhece vêm desse lugar, do bairro onde também moraram seus pais quando crianças, da praça em que as duas gerações brincaram e namoraram, da escola onde ele e Nelson estudaram, de Cabo Frio, a praia da infância, enfim, dos locais por onde o corpo transita com familiaridade. Em certa medida, a casa em que nasceu, ambiente em que passou por momentos tão marcantes, acompanha o protagonista por todos os outros lugares que ele frequenta, o que o atormenta a ponto de buscar um sentido saudável à existência no distanciamento dessa zona familiar, como se afastar-se geograficamente propiciasse o escape dos genes que o fazem sentir, quase ininterruptamente, a terrível dor de estar vivo.
Contudo, por mais que se tente alcançar o total desprendimento do passado, o final que se anuncia desde a primeira página do romance aponta para a impossibilidade de fugir de quem somos e daquilo que nos forma enquanto indivíduos. O sentido da vida parece estar em aceitar que o viver é uma sequência de mortes – que, no entanto, não são necessariamente o final, porque se abrem a novos começos, a possibilidades de reescrever a própria história. Saber admirar a aurora de cada novo dia, Walter percebe lentamente em sua segunda chance, é o que faz tudo valer a pena.
>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.
Assista à entrevista com o autor no canal do LiteraTamy:
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
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