top of page

Sabendo que és minha: escrita como ferramenta de exploração do luto



“Minha Mãe Morreu”. Essa é a frase central de Sabendo que és minha (Jandaíra, 2020), de Fabrina Martinez, novela autoficcional sobre o luto de uma narradora inominada pela morte de sua mãe, que ocorre durante o processo de reaproximação das duas. A morte chega por escrito, nas palavras do médico endereçadas ao banco, e embora se anuncie pela carta, não se concretiza de imediato: é preciso assimilá-la. Pela escrita a morte vem, também por ela se desenvolve o luto, o parto da dor prolongada como se tudo depois da notícia fosse apenas reverberação do impacto que ela causa. Porque acontece no gerúndio, a morte exige uma elaboração contínua e assim, escrevendo, ela se dá.


Muita coisa ganha vida com essa morte, como a consciência da permanência materna naqueles que ficam, uma presença muito mais ativa do que o suportável. Mais importante que isso, emerge uma voz narrativa propiciada pelo luto; com a morte da mãe algo se abre pela escrita, chave capaz de situar a narradora no lugar bem quisto de espectadora, contornando o desenho aquarelado da memória enquanto descobre que, embora muito imaginado, o luto é real e sempre uma descoberta pessoal. Uma canção de ninar ensinada pela mãe sobressai de suas lembranças e a noção de pertencimento recíproco evocada no verso sabendo que és minha eu também sou sua ecoa por todo o livro. Assentada entre “Minha Mãe” e “Minha Filha”, três mulheres insuportavelmente parecidas sob seu ponto de vista, “minhamãe-eu-minhafilha” formando uma só categoria, a protagonista assiste à aproximação entre maternidade e morte, que se associam na medida em que invariavelmente alguma coisa precisa morrer para que outras possam nascer. Maternidade e morte constituem marcos temporais que determinam instâncias discursivas no texto, sutilmente diferenciadas por letras maiúsculas: de um lado, a mãe em caixa-baixa, livre dos laços de mutualidade do pronome possessivo e que morre para muitas pessoas, do outro, Minha Mãe, cuja ausência se faz sentir muito antes de sua morte física e que morre só para a filha. A mãe engravida porque quer ser amada, e a filha sente Culpa por frustrar suas expectativas, por impor a maternidade sem conseguir oferecer em troca o amor esperado como obrigação filial. Num mesmo movimento, mas em sentido oposto, ela se torna mãe para afirmar-se capaz de amar alguém. Tudo isso revela a complexidade das relações entre mães e filhas e não só “o esforço que o mundo faz para que deixemos de ser filhas para ocuparmos o lugar de nossas mães”, como também o esforço da própria filha para não ocupar esse lugar.


Quando consigo frear meu impulso de colonizar Minha Filha sei que estou bem. Mas a vontade de invadir continua, como se fosse meu dever organizar seu mundo, servir o que ela precisa, anular sujidades e inseguranças e fazer dela e do seu espaço o reflexo de mim. Sei que sou digna da maternidade quando não é feita a minha vontade. Minha Mãe, Minha Avó, a bisavó da Minha Avó e Eu. Mulheres que foram colonizadas e acreditaram que era seu dever constituir a ordem sepultando suas identidades, sepultando as identidades de suas filhas e sendo, no gerúndio, imperceptíveis. Fazer diferente é acolher a mim e à Minha Criança que cresceu calada, reclusa e privada de vínculos ou afetos. (p. 76)

Diante da impotência incomum à narradora acostumada a ser quem resolve todos os problemas, surge nela um tipo de obsessão pela morte que só se atenua pela movimentação, representação do gerúndio em ação. Um dos movimentos centrais da superação apreendida pela escrita é o abrir e cerrar dos olhos. Para a protagonista, fechar os olhos corresponde a olhar para dentro, uma cinesia simples, mas que por vezes parece impossível face ao peso do real. Porque é difícil aceitar a continuidade das engrenagens da vida, mesmo o pestanejar é um confronto com o real, que promove o embate entre o que há do lado de fora e o que se esconde do lado de dentro — como a zona abissal, inúmeras vezes repetida no texto, que a distancia da mãe. A zona abissal é uma área dilatada pelas mentiras maternas, quase uma compulsão que a filha toma de empréstimo como semelhança de discurso eficaz em aproximá-las (tanto que sua última frase dirigida à mãe é, justamente, uma falsa promessa). Em contraste à mentira constante sobrepõe-se a morte, essa, sim verdadeira e absoluta.


Por anos a mãe é juíza do corpo que pariu: um corpo gordo, agora atravessado pelo luto. No curso da memória, a narradora admite-se “expatriada do [...] próprio corpo e desincorporada do mundo” em decorrência da relação com a mãe, buscando despertar alguma alegria no rosto materno por meio de tentativas forçadas de emagrecimento, a primeira delas solicitada quando a filha tinha apenas três anos. Habituada às violências cotidianas diante das quais aprende a se ajustar, fazendo-se caber para sobreviver, com a morte da mãe a protagonista vislumbra a possibilidade de se livrar do sentimento de traição por não corresponder aos ideais maternos, e gradualmente o tom de sua fala passa do autoflagelo à autocomiseração, chegando enfim à identificação de uma afetividade até então interditada. Ela assume seu corpo como território-pátria pela escrita de enfrentamento, numa reintegração da posse de si mesma e de seus desejos, não como mãe ou filha, mas antes como mulher.


Há muito silêncio envolvendo a palavra gorda. Você conseguiria dizer em voz alta e não sentir vergonha, medo ou reprovação? Consegue dizer GORDA GORDA GORDA e saber que é só uma palavra e não algo tão vergonhoso que você deseje mudar em si ou em alguém a ponto de causar dores físicas e emocionais para que essa pessoa ou você – GORDA – diminua até não mais existir? [...] Entende que o silêncio que antecede a palavra GORDA é cheio de significados e ausências que não podem ser disfarçados com uma blusa larguinha ou manga comprida ou calças escuras? GORDA. A última imagem que Minha Mãe teve de mim. (p. 86)

Metáforas marinhas permeiam o livro e as sessões de análise da protagonista, reflexo de uma forte alegoria criada pela mãe para explicar que há uma célula, movimentando-se pelo corpo de qualquer pessoa, em que se concentra toda a vida. “A célula é um tubarão e nosso corpo, o mar”. Quando a célula materna é atingida, comprometendo seu corpo por completo, o corpo-mar da filha encontra a chamada Lula Vampiro do Inferno, “o infamiliar dos cefalópodes. [...] Ela vive entre quatrocentos e mil metros de profundidade no oceano, numa área conhecida como zona mínima de oxigênio ou zona de sombra. O luto é como uma Lula Vampiro do Inferno. É o infamiliar das emoções” (p. 77). O conceito de não-familiar freudiano, latejante no relacionamento entre as duas que se estranham embora sejam familiares, materializa-se figurativamente em lula, e a protagonista, à deriva desde a morte materna, lentamente empreende mais uma locomoção, dessa vez em direção a um encontro harmonioso com o luto, com o estranho que habita nas profundezas de seu próprio oceano. Para tanto, toma de instrumento o silêncio, que no decorrer da obra assume funções distintas e recebe diferentes tratamentos. Uma vez que “existe um silêncio sobre a morte que sustenta o silêncio coletivo sobre o luto”, romper com as opressões do silêncio, diante de sentimentos dos quais a linguagem a princípio não dá conta, é um empenho corajoso de suspender a negação de si mesma e de suas emoções infamiliares.


As ligações com o silêncio singularizam a dor da protagonista, que lida com ele em várias etapas nessa gradual retomada da vida. Primeiro, a ausência de sons assusta pelo contraste, já que a mãe costumava falar muito. Depois, fortalecendo o ressentimento que age como cordão umbilical poderoso, o silêncio vira refúgio essencial à sua sobrevivência e à manutenção de seu relacionamento com a mãe, na medida em que vai se estabelecendo como idioma compartilhado entre elas, uma possibilidade de diálogo, preferível a dizer a fatídica frase que se repete, solidificando-se como núcleo de tudo, “Minha Mãe Morreu”; até que essa sentença passa a ser libertadora. Com a partida daquela a quem pertencia originalmente a narradora se vê sua pela primeira vez, livre para ser quem é, ainda que a constatação de que “para nascer a filha é preciso morrer a mãe” seja dolorosa e a liberdade precise ser aprendida também no gerúndio. No fim das contas, a morte humaniza não apenas a mãe, mas também a filha. E embora o texto afirme que a morte levou toda possibilidade de restauração, há, sim, um movimento (talvez o mais importante da obra e do processo de luto) de reparação assegurado pelo ato da escrita: a redenção da protagonista por si mesma.


Sabendo que és minha é um livro de movimentações subaquáticas que aponta a escrita como mistério e resposta. Seu texto grave, denso e, acima de tudo, veraz, ascende à superfície do luto de uma mulher que nota-se viva por meio da morte, não como um florescimento, mas como um reconhecimento de si mesma e de seu corpo enquanto portal do sentir, sepultando o silêncio pelo riso afetivo de quem finalmente se descobre alguém. Suprindo a falta de obras que elaborem a perda materna, a primeira novela de Fabrina Martinez representa um divisor de águas interno que nos sensibiliza pelo aprendizado, sempre possível e não indolor, de apreciar a beleza dos ciclos naturais e abraçar as criaturas marinhas que carregamos conosco.


>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

bottom of page