top of page

União dos sentidos e dissolução do tempo em "No fundo do oceano, os animais invisíveis"


Foto: Reprodução.


A história começa na mata. O protagonista de No fundo do oceano, os animais invisíveis (Reformatório, 2020) é Pedro Naves, narrador fragmentado a suportar os murmúrios gritantes da floresta, rumores que ele aprendera a ouvir muito cedo na vida. Combinando sons, luzes, sombras e cheiros, o prelúdio do segundo livro de Anita Deak ergue uma paisagem reveladora da sinestesia que orienta as páginas seguintes pela ordem do caos.


Na família Naves a vida humana celebra-se pela morte animal: o nascimento de um homem pede a eliminação bruta do bicho mais arisco do perímetro, manchando de sangue a gênese da criança. Mais do que obedecer à cíclica cadeia alimentar, que faz da morte um requisito da vida, o hábito reforça a noção de supremacia da humanidade sobre a natureza, como categorias distintas mesquinhamente hierarquizadas em favor das gentes. Nascido em 1948 na fictícia Ordem e Progresso (um micro Brasil), Pedro é atravessado por essa crença antropocêntrica de que o homem é o Deus dos animais – o que então faria dos homens os animais de Deus. Ouvindo os bichos e as plantas, mensageiros do porvir, ele entende que o homem é o boi do homem e experimenta a existência humana como um caminhar em direção ao abate. Sua condição de filho numa linhagem patriarcal tradicionalista corrobora a resignação inicial que guia seus passos pela masculinidade exigida dele, laço familiar inescapável.


Se cimentasse em cada vértebra da coluna o que nos era de direito e andasse ereto, pois assim deve andar um homem, estaria cumprindo o que deve um filho: a sina da continuidade; meu pai poderia morrer e eu respiraria de onde havia parado, faria das minhas mãos as dele, é para isso que se faz um filho ­– para continuar-se obliquamente, para permanecer, depois de morto, disfarçado no mundo. Altamir Naves me preparava para a morte; quando visitávamos o pasto pelas manhãs, ele me dizia o que fazer, o que falar, buscava plantar em mim seus gestos, se ele tinha dado certo que eu fizesse o mesmo, é a repetição que cria o sentido de pertencimento, o homem e a terra amigos, o homem e o animal apaziguados. (p. 20)

Diante de uma realidade tão rígida, exigente e contraditória quanto a sua, o encontro de Pedro com a indígena Anahí, o diálogo com a selva e com os animais e, especialmente, o nascimento de seu amado irmão Ernesto (espécie de duplo a sugá-lo a existência, solapando-a pela semelhança física que parece torná-lo substituível e enfim dispensável em seu círculo social ao mesmo tempo em que simboliza uma outra realidade possível para o eu – e de quem sentimos falta no avançar do relato) fazem o mágico penetrar no realismo elástico da narrativa. Não por acaso essas aberturas para o maravilhoso se dão nos poucos espaços de pertencimento e sentimento de Pedro, afinal de contas, a afeição em um homem a quem a ternura fora duramente interditada só pode mesmo ser coisa mágica, revestida de extraordinário. Os caminhos do afeto, que são também rotas de fuga da hereditariedade opressora e que com o passar dos anos sensibilizam o protagonista em relação aos animais e à floresta, passam pela palavra. Desde a descoberta do corpo-imagem das palavras ele se dedica a coletá-las, até colocar o tempo em estado de espera por meio da poesia, um exercício de inusitada insubmissão que, na cidade aonde vai para estudar, aproxima-o de Sara e seus ideais revolucionários.


Se até então o protagonista se mantinha alienado pelo pensamento conservador da casa paterna, seu relacionamento com Sara, filha de um militante de esquerda cuja biblioteca política o impressiona decisivamente, vai direcioná-lo ao olho do furacão durante o regime militar brasileiro, levando-o a fazer parte da Guerrilha do Araguaia, o mais longo movimento armado de resistência à ditadura no Brasil. Depois de um bom período distante da vida na natureza, imerso na vivência um tanto insípida da urbe que a própria linguagem da narrativa acompanha endurecendo, Pedro se vê em pleno combate na região amazônica, e é como se retornasse aos anos de criança em que decifrava os códigos de sobrevivência emitidos pelos muitos estímulos naturais ao redor, movimento estampado por uma terceira camada de linguagem que funde o lirismo pueril à certa brutalidade de indivíduo maduro, conhecedor inclusive das torturas policiais. No entanto, mesmo que se ancore em episódios históricos de suma relevância ao enredo, o livro não os trata como condutores principais: prevalecem em destaque as reações do personagem a esses acontecimentos, receptor e transmissor das experiências todas. Ao convocar cada sentido do protagonista para trabalhar simultaneamente no papel de mediadores discursivos da projeção fabular, a narrativa chama também os nossos sentidos à ativa, visão, olfato, paladar e tato misturados na apreensão do vivido que nos chega através de Pedro. O texto de Anita Deak toma a sinestesia como bússola, consciente de que pela união dos sentidos o narrado adquire tangibilidade, fazendo animais nunca vistos emergirem do fundo do oceano com cores e formas distintas para cada olhar que aprende a enxergar o invisível.


Aí entra o mais impressionante da obra: o trabalho com o tempo, pautado por uma irregularidade orgânica que singulariza toda a expressão do texto. Não se trata apenas de promover a não-linearidade do relato, recurso conveniente mas já bastante utilizado, mas sim de provocar uma sobreposição de passado, presente e futuro, ou antes uma dissolução do tempo em si mesmo, engendrando a convivência dos vários “eus” que Pedro é no passar dos anos, acúmulo temporal que chega a ser responsável pela criação de imagens. Dessa forma, para além do quando, a disposição do tempo no livro responde também a o quê se conta, quem conta e como é contado, um aproveitamento total da instância temporal. Ainda assim, e mesmo que siga pelo percurso tradicional do chamado romance de formação, infância, juventude e fase adulta do protagonista exploradas pela narrativa, No fundo do oceano, os animais invisíveis é mais um romance de deformação ou desintegração desse sujeito que, negando os caminhos da hereditariedade, desfaz a si mesmo e os recursos de linguagem com os quais organiza seu relato em plurissignificação, “suscitando experiências distópicas na forma do texto”, citação da própria autora em entrevista sobre a distopia enquanto linguagem à Revista de Estudos de Identidade e Intermedialidade.


Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

bottom of page