Entre os romances nacionais publicados em 2019, Marrom e amarelo recebeu especial atenção de leitores e da crítica literária. Esse tipo de reação sempre me instiga a desvendar o que pode haver de tão comunitário em uma obra de ficção para que ela seja acolhida com tamanha unanimidade pelo público, ultrapassando o quase-sempre-mesmo círculo de resenhistas de grandes veículos e chegando efetivamente ao chamado “leitor-comum”. No caso do mais novo livro de Paulo Scott, me parece que sua grande qualidade está na temática angustiante e especialmente brasileira da identificação pelo colorismo. Afinal, quem é branco no Brasil?
Por ser uma pessoa parda, de pele não-branca e também não-retinta, o protagonista Federico habita uma espécie de não-lugar, a nível social e privado, que deve gerenciar em prol de sua identidade. Seu irmão Lourenço, por outro lado, assim como a maior parte das pessoas negras no Brasil, também tem a identidade cerceada, mas pelo apagamento da própria ancestralidade, alimentado sobretudo pelos séculos de escravização que funda o país, mas também pelo racismo que continua agredindo a identidade negra. Criados em uma família autoproclamada negra, a noção de identitarismo é base da constituição de ambos. Assim, em certa medida a formação dos dois personagens passa por um vácuo fundamental, ainda que de naturezas distintas. O conceito de “não-lugar” se orquestra para cada um dos personagens e afeta seus comportamentos e modos de agir frente à discriminação racial de maneiras particulares.
A inquietude de Federico o leva à militância negra, onde ele atua com destaque durante toda a vida, chegando até a ser convidado para compor o conselho de criação de um software governamental supostamente capaz de julgar a validade das cotas a estudantes com tons de pele variados. Responsável por narrar, o estilo de sua prosa é raivoso e denuncia tanto seu cansaço quanto sua urgência de agir, dois traços que disputam o domínio de sua interioridade fragmentada. Lourenço, por outro lado, é o irmão que fica. Ele não foge de sua cidade-natal e nem precisa abraçar a militância: estar vivo sob a pele retinta é por si só um exercício de resistência. Um episódio-chave da adolescência dos irmãos vem à tona por meio da filha de Lourenço, também envolvida ativamente em movimentos sociais de esquerda. A situação força o retorno de Federico e esse deslocamento em direção ao passado escancara contradições do protagonista inerentes às questões raciais que ele carrega como um estandarte:
Ele me olhou com os olhos vidrados. Meu chapa, vou te dizer o seguinte, Tu meio que te acha, né, Deve ser divertido posar de porta-voz da galera, rei da teoria, protagonistão, Tarzan da macacada, Diz aí, Veio conferir a macacada, Tirar uma onda com a macacada, olhou ao redor e voltou a me encarar, [...] Tu é metidão, Federico, sempre foi, Olha tua cor, olha o teu cabelo, o jeito que tu usa esse teu cabelo lambido, Tu tem essa tua casca de branco, essa pele-passe livre do caralho, Tu nunca vai entender o que é ser preto, ser um fodido perseguido vinte e quatro horas na tua rua, no teu bairro, na tua cidade, Tu não sabe, Tu é metidão. (p. 97)
O colorismo faz com que cada um dos irmãos seja vítima de violências específicas, algumas até inimagináveis para o outro, e molda suas personalidades de modos diferentes. Federico tem um quê de colonizador, o que poderia ser apenas um traço típico de irmão mais velho, mas é passível de interpretações mais fortes pela pauta colorista do romance. A narrativa é muito responsável nesse sentido, porque ainda que o racismo desponte como seu grande tema, em Marrom e amarelo também importam as idiossincrasias de cada personagem, seus traços fisicamente imperceptíveis. Essa preocupação com o que há de individual em cada um, para além da cor da pele, é uma boa defesa contra a eliminação de subjetividades, como a política de cotas discutida no livro tenta propor. Muito da personalidade das figuras do romance se transmite pelas conversas que elas têm, e de fato seu texto é abundante em diálogos. A voz inflamada de Federico é levada à desconstrução por meio desse dialogismo estimulado pelo movimento de retorno que instaura dois fios narrativos que se unem. Em meio às incoerências do protagonista que se assume representante do combate à discriminação racial, despontam situações em que o racismo velado ainda o choca — e nos choca também, uma vez que o racismo se articula tão internamente à nossa organização social que pode nos tornar insensíveis a suas manifestações mais sutis.
Devo me preocupar, repeti a pergunta. Acho que vale a pena investir numa terapia, penso que este é um momento crucial para ela, Ela ainda tá impactada pelo sofrimento da amiga que perdeu o olho, Mas o que aconteceu com a amiga não foi o começo desse estado dela, A irresignação, A raiva dela, São anteriores, Bárbara disse. Raiva, Será, perguntei. Raiva. Irresignação, Pavor, Parece que ela tem pavor da ideia de não conseguir ser a protagonista da própria história, o que me faz lembrar de ti, Não sei se a ponto de não aceitar a realidade, de negligenciar os riscos da realidade, A diferença entre vocês é que ela ainda não foi derrubada, Mesmo com tudo que aconteceu com ela na quarta-feira, ela ainda não foi derrubada, Talvez seja mais forte do que tu, provocou. Com certeza ela é mais forte do que eu, eu disse. Mas é só questão de tempo, A vida vai derrubá-la daqui a pouco, não tenho dúvida, E vai derrubar feio, Sendo ela como é, Pode apostar, é questão de tempo. (p. 136)
Marrom e amarelo descortina o Brasil para mostrá-lo como realmente é, um país não-branco onde o racismo só persiste porque a nação insiste em não se assumir negra. O livro também defende que a raiva dificilmente é uma alternativa tão efetiva ao combate das desigualdades quanto o afeto, já que a raiva cega, enquanto o afeto faz ver e enxergar o outro. O romance de Scott, passeando entre a História e a distopia (assim como caminha nosso país), é como um produto brasileiro de reivindicação da própria história, que insurge contra o apagamento de suas raízes e acolhe sua identidade. O final em aberto reforça a ideia de que o colorismo e o identitarismo, bem como a resposta para onde fica a pessoa parda e quem é o branco no Brasil, são processos ainda em curso, sem conclusões. O importante é o que o primeiro passo já foi dado e é cada vez mais urgente aceitar a negritude como causa nossa.
Assista à entrevista com o autor no canal do LiteraTamy:
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
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