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"Alguns humanos" de Gustavo Pacheco, taxidermista das palavras




Se há uma diferença primordial entre animal e humano, esta diferença é a capacidade de imaginar. O ser humano pode desenvolver hipóteses, criar outros mundos possíveis e apresentá-los, contar histórias, inventar, deixar-se levar ou não pelo desejo e, tendo de lidar com as inevitáveis imprecisões dessas habilidades, é formado por inconsistências. Até onde sabemos, entre todas as espécies e reinos, tais competências são exclusivamente nossas. Mas como nossa tão limitada linguagem pode dar conta de comunicar tantas incertezas tipicamente humanas? Aí entra a literatura: porque não trabalha com certezas, ela se contrapõe à perspectiva cartesiana do mundo e apreende o que está além da lógica — como, por exemplo, nossas (constantemente refutadas pelos processos civilizatórios) correspondências com o mundo animal.


Depois de séculos se convencendo de que é superior à barbárie animalesca, hoje a civilização ocidental de um modo geral concorda com a ideia de que seres humanos são radicalmente distintos dos bichos. No entanto, somos tão dotados de razão quanto de instinto. Nossos afetos, sentimentos e impulsos não são necessariamente mediados pela linguagem e estão igualmente presentes nos animais. Se o linguajar do bem-estar social defende a oposição hierárquica entre humano e animal, aquele sempre superior a este, às artes, por sua vez, e com especial atenção à literatura, interessa tanto o que difere ser humano e bicho quanto o que os aproxima. Ela parece perguntar: seria possível tornar verossímil a representação daquilo que intuímos da interioridade dos animais?


Contra a hegemonia da racionalidade, a literatura explora, por meio da especulação promovida pelo deslocamento de perspectiva, justamente essa zona ambígua e enigmática entre homem e animal. Já dizia Derrida “o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe à poesia, eis aí uma tese, e é disso que a filosofia, por essência, teve de se privar. É a diferença entre um saber filosófico e um pensamento poético”¹. Assim sendo, o idioma animal cabe à literatura, não à filosofia ou à ciência, porque só a expressão artística pode fantasiar sobre o intransitável que vive no animalesco. A literatura consegue e faz desmontar a máquina antropológica, como chamada por Agamben, redesenhar e explorar os limites que separam e unem homo sapiens e animalis. O texto literário é o relato do improvável que desestabiliza certezas modernas, inclusive a certeza de que animal e homem são radicalmente contrários. Por isso, o escritor deve ser apto a renunciar a um saber humano para entrar na pele do animal — ou ao menos imaginar como seria se enfrentássemos nossa face animália. É isso que faz Gustavo Pacheco em Alguns humanos (Tinta-da-China, 2018).


Formado por onze contos, o livro tem um estilo narrativo bastante notável. Seus textos, muitos dos quais baseados em situações reais, são narrados quase como mini-documentários, mantendo certa distância pela linguagem e assumindo a vez de relatos do real. O afastamento do narrador em relação ao narrado nos oferta uma experiência muito similar à dos passeios tradicionais em museus, onde o visitante geralmente deve se manter atrás das linhas-limites e observar acervos históricos, selecionados e posicionados de acordo com a curadoria responsável, provavelmente em busca de retratos das realidades em vários tempos. Há inclusive um conto que se passa em um museu, onde estão expostos alguns dioramas. Sobre eles, um dos personagens diz:


“Mesmo a excelência artística tem ideologia. Preste atenção em todos os dioramas, e você verá que não há imperfeições. Não há espécimes velhos, doentes, defeituosos. Durante as expedições de caça ao museu, vigorava uma espécie de seleção natural ao contrário: só os imperfeitos sobreviviam. Se um elefante tinha uma presa maior do que a outra, não corria risco de vida. Mas se fosse um exemplar perfeito, sem falhas, na flor da idade, era abatido na hora. E mais: preste atenção e você verá que a família nuclear ocidental, papai-mamãe-e-filhinhos, é a referência central, ainda que a realidade não estivesse de acordo. Então, mesmo que o nível artístico dos dioramas seja insuperável, acho que isso não é argumento para que eles continuem em exibição.” (p. 50)

Dadas as devidas proporções, Gustavo Pacheco atua de modo semelhante a um taxidermista das palavras, trabalhando as vísceras dos sentidos e dos temas em prol da conservação do que considera relevante. Nesse sentido, seu livro é como um pequeno museu. Enquanto antropólogo experiente no serviço museológico, o autor toma suas experiências como acervo e transforma Alguns humanos em uma galeria de obsessões temáticas inesgotáveis, emolduradas por seu humor narrativo descontraído em convívio com situações incômodas que beiram o unheimlich freudiano. O leitor sente que visita salas expositivas onde encontra qualquer coisa de si mesmo divertidamente exibida não só nos dioramas humanos, mas também, e talvez principalmente, nos espécimes animais, já que o livro brinca muito com essa aproximação. Durante grande parte do conto inicial “Dohong”, por exemplo, não é possível distinguir o que é animal do que não é — e nós somos, inclusive, enganados pela expectativa alimentada na construção narrativa. Tal movimento de achegamento do humano ao não-humano perturba a tradição antropocêntrica ao colocá-los constantemente no mesmo nível. O título da coletânea, que também intitula um de seus mais representativos textos, ainda que pareça privilegiar as pessoas e não outros seres, reforça a complexidade envolvida naquilo que se entende por humano. De fato, determinar o que cabe e o que não cabe nesse campo semântico não é tão simples quanto pode parecer.


Algumas das histórias trazem circunstâncias de desumanização de pessoas como sinônimo de animalização, geralmente associada à humilhação ou à objetificação desses seres. Pacheco considera o traço pejorativo do termo “animal” e a partir dele denuncia o tipo de preconceito social que enxerga minorias como menos humanas, relegando-as ora ao espaço da bestialização repulsiva, ora aos holofotes da exposição exótica, mas, de toda forma, sempre apartadas do padrão de humano ditado sobretudo pela cultura estadunidense. O autor se preocupa tanto com as parecenças quanto com as dissemelhanças entre humano e não-humano e tem o axolote como representante de sua temática. O fascinante animal aquático que mesmo adulto ainda retém características típicas da sua forma jovem ou larvar, protagonista de um dos contos mais impressionantes de Cortázar, estampa a capa da belíssima edição da Tinta-da-China e anuncia o caráter de indeterminação da obra, que não soluciona e nem pretende solucionar a charada, apontar se homem e animal são de fato seres radicalmente diferentes ou se, pelo contrário, um só existe pela existência do outro. O que interessa à literatura de Pacheco é trabalhar com a fronteira, com a névoa que nos incomoda a visão. E no que diz respeito à bruma que desliga (ou unifica) o ser humano do animal, ele a descreve de modo tão fascinante quanto o nado do simpático axolote.


¹ DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Trad. Fábio Landa. São Paulo: Unesp, 2002.


Assista à entrevista do autor para o LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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