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A literatura caleidoscópica de Alejandra Costamagna


Foto: Ritta Trejo

Caleidoscópio: essa é a palavra-chave da literatura de Alejandra Costamagna. Há pouco tempo a chilena teve duas obras publicadas simultaneamente no Brasil pela editora Moinhos, a reunião de contos Impossível sair da Terra, de 2016, e o romance Sistema do tato, de 2018 (ambos com tradução de Mariana Sanchez), livros que estabelecem o caráter intratextual de um projeto literário ousado que, à semelhança do aparelho óptico, apresenta a cada novo movimento combinações variadas de temas, personagens e até mesmo construções narrativas, como que compondo uma só grande narração experimentada por diferentes perspectivas.


As histórias de Costamagna se arquitetam dentro de um mesmo universo. Tanto nos contos quanto no romance há trechos que se repetem, mas com alguma alteração, seja de personagem ou de ponto de vista, rearranjando tudo, como se sua literatura fosse um jogo de quebra-cabeças que ela nos convida a resolver. Reconhecemos peças que se encaixam em mais de uma combinação, às vezes sutilmente trocadas por outras, de modo a decifrar o código narrativo composto por referências internas à sua produção. Esse enlaçamento de narrativas antecipa na forma uma de suas obsessões temáticas: a ausência de fronteiras. Assim como um texto penetra no outro, num lance de continuidade que os confunde (embora haja muitas e essenciais diferenças entre todos eles), também para seus personagens a delimitação subjetiva é uma dificuldade. Não só as divisas espaciais interessam à Alejandra, que bem explora o deslocamento de seus protagonistas entre Chile e Argentina, além de adotar o Japão como cenário de diversos contos, mas também os limiares entre o eu e o outro, e sobretudo o embaçamento desses limiares. Várias de suas narrativas, inclusive o romance, têm a família como núcleo onde as balizas se borram, manifestando excentricamente o infamiliar comum a certa temática dos limites muito presente, e não de hoje, na criação literária latino-americana — em busca de um exemplar brasileiro, penso especialmente na contística de Lygia Fagundes Telles. É preciso dizer que tal temática a autora chilena explora com singularidade marcante, a ponto de ser possível a um leitor minimamente concentrado reconhecer seus textos mesmo que neles não se assinalasse a autoria.


As mudanças geográficas invariavelmente geram distúrbios, geralmente ligados a certa noção de incompletude que funda a individualidade de seus protagonistas. A narrativa longa e alguns dos contos retratam o desaparecimento progressivo de famílias latino-americanas portadoras do desajuste como traço hereditário, como se fizessem “parte de um mesmo osso”, transmitindo ou recebendo detalhes de sua história familiar por situações bastante irregulares; o incesto, por exemplo, é confirmado ou sugerido em boa parte dos escritos. Todos esses contornos desfigurados duplicam as personalidades de figuras que dificilmente são uma coisa só, com frequência definidas por identidades hifenizadas (o pai-tio, a tia-avó, a prima-irmã e assim por diante, despontando o estranho-familiar nos textos), defrontadas pelo aprendizado, ora imposto, ora desejado, de substituir ou de ser substituído por alguém. Aos poucos os personagens deixam de ser quem eram, ainda que esse processo não se dê por completo, restando sempre algum resíduo do eu anterior que inflama, latejando sob a pele então habitada por outrem. Tais procedimentos conferem considerável importância ao desenvolvimento da alteridade na literatura de Costamagna, elemento fundador dos sujeitos dos textos. Em determinado momento, a protagonista de Sistema do Tato sente a invasão de “algo que se move sem sua vontade ali dentro, no seu crânio, e que ela não consegue captar” — entre o alheamento e o ensimesmamento, a maioria das personagens da autora chilena enfrenta, em alguma medida, essa mesma sensação.


“Contrapontos: não competir com o cachorro nem com a mulher do seu pai, não procurar-se em fotografias de álbuns alheios, não viver a vida dos outros, não esperar os mortos onde ninguém os chamou, ter um jardim e regá-lo toda noite, não ver as montanhas como acidentes geográficos, mas como ramais biográficos, chorar nos enterros alheios e nos próprios, sobretudo nos próprios, subir em sótãos como quem escala um pico. É isso que ela deve fazer: atrever-se a subir a escada do sótão e confrontar a memória com a ruína.” (Sistema do tato, p. 91)

A impossibilidade, marcada no título da coletânea Impossível sair da Terra, articula-se como noção fundamental na produção de Costamagna, atuando como motor e conservador dos conflitos desenrolados em seus textos. Empenhadas em explorar os desdobramentos do impossível, suas narrativas são acompanhadas por certo efeito assíduo de incerteza, de indefinição refletida nos cenários das histórias; as filas, as bancas de jornais, as estradas e estações de trem, locais de passagem onde ocorrem eventos definitivos da vida de seus personagens, são como bases espaciais de reconfiguração do indivíduo, reforçando o caráter inexato e fronteiriço dos escritos. A imprecisão só se suspende com a morte, esta sim irrefutável numa literatura que cheira a queimado, couro e borracha, iluminada pelas chamas de um fogo enigmático a atravessar o caminho e a lucidez dos protagonistas. Nesse caleidoscópio literário de substituições, pirotecnias, imprecisões, justaposições e epidemias que Alejandra movimenta, nossa função de espectador ativo é perseguir atentamente as luzes e vultos iterados nos textos, apostando na chance de desvendá-los — mas não sem antes encararmos a pergunta desafiadora: are you ready?*


* Título de um dos contos, a frase em inglês are you ready? aparece mais de uma vez nos escritos de Costamagna.


Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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