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Tomar decisões no calor da hora — antes que elas sejam tomadas de você


Um homem se masturba no transporte público, é flagrado e espancado por outros passageiros e volta para casa, onde admite seu crime à mulher. Essa mulher é Mônica, que no início da narrativa está se arrumando para jantar quando tem a vida interrompida pelo tipo de informação que ninguém jamais pensa em receber. Geralmente, as notícias que veiculam situações como essa concentram-se na figura do assediador ou das pessoas assediadas, dificilmente se interessam pelos personagens secundários desse roteiro tenebroso, por aqueles que encaram a decepção de confiar em alguém que se apresenta não-confiável. A novela Mônica vai jantar (Não Editora, 2019), do autor baiano Davi Boaventura, vai na contramão da norma e joga o holofote justamente sobre essa figura marginal, enquanto o responsável pela infração permanece calado, como uma sombra móvel, incômoda e opressora dentro do livro. Davi mira uma figura a um só tempo periférica no caso e diretamente afetada por ele, e escreve um livro centrado na perspectiva de Mônica diante do improvável.


Embora o pontapé inicial da obra seja deveras impactante, o seu grande traço distintivo é na verdade o estilo. Sem parágrafos, pontuação ou letras maiúsculas e à base da reescrita constante, a estrutura em um só fôlego pretende reproduzir o ritmo frenético com que os pensamentos acometem a protagonista diante dos disparates que ela enfrenta. Em entrevista para o LiteraTamy, o autor revela que tanto a ousadia temática quanto os procedimentos linguísticos inusitados surgiram conjuntamente, sem que uma das escolhas estivesse subordinada à outra. Davi afirma, confiante, que a configuração do livro não comprometeu os movimentos do enredo e sim reforçou seus efeitos, depois de algumas tentativas insatisfatórias de escrita dentro do padrão formal dos textos em prosa. O narrador em terceira pessoa com seu discurso indireto livre convém ao “monólogo narrado” que acompanha os deslocamentos, sensações e pensamentos de Mônica, cujo nome só aparece no título, e coloca o leitor no lugar de espectador involuntário de uma intimidade bruta, violada pela quebra de confiança em nível micro e macro, que a protagonista rumina incessantemente ao passo que se prepara para sair de seu apartamento, de repente apertado demais.


A ausência de diálogos é um ponto positivo que a atmosfera de solilóquio recontado propicia, e não pela falta de interlocução em si, mas porque essa omissão não configura silêncio. Mônica vai jantar é um livro barulhento, agudo como um grito que escapa frente ao inesperado. Ainda que não haja transcrição de conversas entre os personagens, nele se oferta a experiência de imersão em um grande ruído formado por interferências que não deveriam estar ali, a experiência de Mônica. A narrativa sem conversações é comunicativa, transmite o berro calado de uma mulher confrontada pelo contrassenso, que não pode sequer repousar para digerir as condições impostas por quem confiava, porque precisa dar conta de seus próprios compromissos — enquanto é observada por um narrador quase sádico, entretido em descrever o desgosto de quem é levado pelas forças do absurdo. Um dos ecos que vagueiam pela novela diz respeito à sexualidade e a questões de gênero, e como elas ditam as relações interpessoais. O relacionamento de Mônica com seu namorado-marido (ela nem consegue definir), e até mesmo com o gerente da loja em que trabalha, refletem arranjos de poder que garantem a autoconfiança do homem que se sente confortável o suficiente para assediar a funcionária ou para se masturbar no ônibus, ao mesmo tempo em que impedem a mulher de denunciar o chefe ou de resolver largar o companheiro assediador. É sempre ele, o homem, que toma as decisões, por si e pelo outro, e não como representante do coletivo mas como ser superior à noção de coletividade, atitude validada pela chamada masculinidade tóxica. Se na vida aqui fora estão sendo estudados meios de driblar e sanar esse comportamento, em sua ficção Davi Boaventura não tenta fugir à regra que ordena o patriarcado. Segundo ele, ao livro não cabia o viés ensaístico ou mesmo responder questões, e sim compreendê-las. Uma vez descrita a ocasião e dado o desvio do olhar sobre ela, é cargo do leitor perceber que muitas decisões referentes ao eu podem ser tomadas pelo outro (especialmente se o “eu” estiver em situação de vulnerabilidade respaldada por estruturas sociais seculares) e mensurar a parcela de culpa do eu nesse monopólio da decisão.


Em suma, Mônica vai jantar é um livro nada óbvio. Desacostumados que estamos com a liberdade, até pensamos que o desconforto maior nessa leitura é ultrapassar as barreiras de sua configuração livre: sem parágrafos, sem pontuação, sem letras maiúsculas. Sem quaisquer amarras. Em um primeiro momento, podemos mesmo acreditar que o texto está sob nosso domínio, comandado pelo nosso ritmo. Mas eis que o que ele conta nos atropela com tanta carga de absurdo e incômodo que fica difícil acreditar que é possível Mônica ir jantar com tudo isso acontecendo. E então somos dominados pela narrativa. As amarras enfim se mostram. Não estão na escrita mas sim em Mônica, e também em nós, incapazes de abandonar a leitura antes de descobrir se e como essa mulher vai conseguir dar conta de tamanho disparate. Fascinante.


Assista à entrevista do autor para o LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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