Entramos em Santuário (Macabéa, 2020) embalados pela música de Dona Ivone Lara. É dela a epígrafe do quinto livro de Maya Falks, cujo título faz referência à cidade onde se passam os contos. Seguimos no passeio guiado pelas ruas do povoado, mas, diferente do que propõe o turismo tradicional, nossas andanças começam por dentro das casas e da intimidade de seus moradores. O ritmo animado do samba “Andei para Curimá” que nos abre as portas do lugarejo não esconde o clamor fiel de quem implora por proteção e salvação a todos os santos. Também assim se configura a existência dos habitantes do município, entre alguma alegria e grandes angústias, mas com muita fé e resistência. Do centro de Santuário ressoa a pergunta: quantas vidas cabem em uma só cidadezinha?
Seu edifício mais antigo, o primeiro de todos, é a igreja. Pela arquitetura os princípios cristãos se instauram, espraiando-se pelos hábitos da comunidade que combate a miséria com dificuldade. Ao redor do templo, as casinhas são cenários privados em que infâncias se interrompem por razões financeiras, a sexualidade feminina é oprimida e censurada com violência e famílias se desintegram pela intolerância. Conto após conto, personagens reaparecem em novos contextos, em tempos que não seguem uma ordem cronológica linear, mas servem aos interesses da grande história de Santuário da qual fazem parte e ajudam a contar. Figuras típicas de pequenas cidades, como o padre, o político mentiroso e a prostituta, têm seu lugar nas tramas que vasculham o que há por trás de estigmas e estereótipos. Falks não romantiza a pobreza, o meretrício, ou qualquer outra situação de desamparo, e nem tampouco retira a força múltipla daqueles que mergulham nelas por falta de alternativas.
Há certo alívio cômico na obra, especialmente nas narrativas iniciais, que não se estende por muitas páginas, perdendo posto para as tristezas e desgraças absolutas que esbarram nos protagonistas, como sina incontornável das ruas pelas quais eles caminham e se formam cidadãos santuarinos. Diferentes níveis de linguagem, mais constantes nos contos introdutórios, também vão deixando de ser explorados, abrindo espaço definitivo para a formalidade padrão que casa bem com a realidade sem folgas disponível ali, ainda que em alguma medida destoe da pluralidade linguística que se espera de um contingente populacional e de enredos tão diversos como os que o livro oferece. Por outro lado, a alternância de narradores não só comprova as habilidades de Falks em atender às especificidades requeridas pelas próprias narrativas, que muitas vezes solicitam uma voz que esteja por dentro dos acontecidos, como também promove mudanças de perspectiva valiosas para que faces ocultas da cidade se revelem.
Eu vou morrer. Hoje, amanhã no máximo, pelo ritmo no qual Danilo, meu marido, cava a minha cova. Faz uns dias desde que ele me trancou no quarto, avisando que me mataria. Da janela do segundo andar, onde estou enclausurada, acompanho detalhadamente o moroso nascimento de minha própria sepultura. No íntimo, eu sabia que isso aconteceria: o cemitério particular já estava à espera nos fundos do terreno quando cheguei a esta casa. Uma tácita e constante ameaça. Eu o chamaria de filho da puta, não fosse o detalhe de que a puta sou eu. É exatamente por isso que ninguém do lado de fora reparou que a primeira-dama não sai de casa há dias, mesmo que me fosse hábito circular por alguns pontos da cidade, escoltada pelos pistoleiros que Danilo empregava como meus cães de guarda. “A puta”, como se houvesse sido uma escolha. Eu nunca tive escolha. (p. 207)
Personagens entram e saem de cena de forma dinâmica, como se atuassem em capítulos de uma minissérie cujo roteiro se costura sem falhas. A autora pinça narrativas onde parece não haver nada: num anúncio de venda, nas ruínas de uma casa, nas indigências de vidas invisíveis. A cidade fictícia serve de estandarte a muitas localidades encontráveis pelo Brasil a fora, convidativa e até aconchegante pela simplicidade e tranquilidade aparentes, mas por dentro surpreendentemente agitada, distante da ideia de pacatez que envolve o imaginário das cidadezinhas. A bonita edição da editora Macabéa ainda conta com ilustrações feitas pela própria autora, que dessa forma estampa Santuário de maneira permanente na lembrança de seus visitantes.
>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.
Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
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