Adam Gordon é um jovem narrador metódico, irritadiço e inquieto. Estudante estadunidense, cumpre intercâmbio na Espanha, onde busca concluir uma pesquisa em tradução. Apesar de bolsista em uma boa universidade, o que conferiria certa qualidade ao seu projeto, desde o começo da narrativa trata de suas próprias produções como um “suposto” talento literário, nada realmente tão bom ou especialmente autêntico. Não esconde os comprimidos brancos e toda a sorte de remédios e drogas ilícitas que consome enquanto aproveita a solidão voluntária da viagem, na verdade revela-se até um pouco hipocondríaco, embora não efetivamente diagnosticado. Isso é o que inicialmente se sabe sobre o protagonista de Estação Atocha, romance do norte-americano Ben Lerner publicado no Brasil pela editora Rádio Londres, traduzido por Gianluca Giurlando. Uma das primeiras cenas externas do livro ocorre em um museu, onde Adam observa pessoas emocionadas frente a determinadas obras plásticas. Ele é cético em relação a essa emoção que chama de profunda experiência artística – o que soa engraçado, vindo de um sujeito que trabalha com literatura e que por isso, segundo a expectativa, deveria ser minimamente sensível ou talvez até mais propício a experimentar essa sensação de entrega à arte a que ele, no entanto, diz ser imune:
O que realmente me interessava na arte era a desconexão entre a minha percepção das obras de arte físicas e as alegações feitas em nome delas. A sensação mais próxima de uma profunda experiência artística que eu tivera talvez tenha sido a vivência dessa desconexão, uma profunda experiência da ausência de profundidade. (p. 9)
Tudo em suas declarações indica superficialidade, artimanha e contradição, como a natureza de suas vivências artísticas intensamente carentes de intensidade, desconectadas da arte. Quando analisa alguém que passa pela profunda experiência artística, aponta o quanto é difícil discerni-la do delírio, já que a arte parece sempre estar ligada a um tipo de loucura, à abdicação da racionalidade que abre espaço a emoções inexplicáveis, como a doidice de inventar ou o encantamento pelas invenções alheias. E, no entanto, Adam continua frequentando museus e galerias, constatando a efemeridade do humano em contraponto à permanência da arte, que se exibe nas paredes e também em sua narrativa: o livro é adornado por imagens que surgem como quebras e exigem interpretações e traduções outras, diferentes das que fazemos com o texto escrito em prosa, testando a noção de Ben Lerner do romance como laboratório, espaço de experimentações e confluência de gêneros.
A fronteira “natural” que separa o protagonista da profunda experiência artística potencializa-se pelas barreiras de idioma que ele encara, as divisas de uma língua secundária que, por mais que se domine, jamais será materna. A vivência do narrador é um retrato do potencial estado de ânimos de quem vive e convive em um território organizado por uma língua que não é a sua, que não está na base da sua socialização nem configura a formação inicial de sua subjetividade, e portanto não faz parte do solo sobre o qual ele se ergue. Isso converte o espanhol numa criação baseada em um “eu” formado por outro idioma, um eu que tenta apreender as nuances dessa segunda língua com tantas interferências que, por vezes, transformam o próprio sujeito em alguém que fala de si na terceira pessoa. Eis a famigerada condição de estrangeiro. Tudo fica assim meio pulverizado, contrai aspectos de sonho ou brisa, com contornos inexatos que alteram e até suspendem o ordinário. Essa é uma conjuntura bastante conhecida e explorada pela literatura, mas Adam é presenteado com um desprendimento muito específico porque se importa justamente com os vácuos da linguagem, tanto pelo seu cargo de tradutor, quanto pela sua profissão-poeta. El Poeta (como é chamado pelos poucos colegas) aspira menos a fluência no espanhol e mais o controle do “talvez” – talvez ter compreendido, talvez ser compreendido – porque reconhece sua comunicação com os hispanófonos invariavelmente invadida por ruídos, distorções influentes em sua percepção das coisas e em sua participação nelas, as quais ele aproveita como justificativa a seu desajuste social.
É na tradução onde se imprime como em nenhuma outra atividade o seu “amor pela própria substância do et cetera”, os subentendidos idiomáticos que um bom tradutor deve estar apto senão a traduzir, ao menos a manter latente na tradução, como camadas internas da linguagem. O romance de Lerner examina o que o processo de aprender uma língua diz sobre o que o (futuro) falante sabe – e transmite – dela, sobre quem o falante é. Até, e principalmente, o método utilizado para aprendê-la é fundamental nesse convívio. Como tradutor, para Adam o contexto linguístico é uma preocupação profissional que ele vê incorporada à sua própria experimentação subjetiva, no contato com o exterior que o cerca para além dos textos que traduz. Embora afirme constantemente que tem um espanhol fraco, é contestado inúmeras vezes por todos a quem o diz. É mesmo de se duvidar que um estudante da língua espanhola selecionado para um intercâmbio financiado não tenha dado provas de que é habilitado. Isso parece mais uma das farsas do protagonista que, paradoxal como só ele, dá indícios de consciência enviesada, sim, mas bastante satisfatória do espanhol. Adam é ciente de muitos elementos originais das palavras espanholas, camadas que até os próprios nativos da língua, acostumados a seu uso prático, desconhecem ou deixam passar. O que ocorre é que seu conhecimento particular do idioma, em vez de auxiliar sua comunicação, atrapalha, forma ruídos promovidos por tentativas megalomaníacas de compreensão de todos os níveis possíveis do discurso, mesmo dos que não são necessariamente evocados pelo interlocutor. Típica mania de tradutor, treinado para considerar o infinito de opções disponibilizadas pelos vocábulos. Essa investigação involuntária da linguagem até em episódios de interação social faz com que o protagonista oscile entre momentos de imensa insegurança e de alta prepotência, comportamentos diretamente ligados à sua relação com o espanhol:
Meu plano era aprender a língua sozinho, lendo as obras-primas da literatura espanhola no original, e tinha fantasiado sobre a natureza e o efeito de um idioma aprendido dessa forma, sobre a maneira como seu sabor arcaico e sua retórica formalmente elevada colidiriam com os elementos mundanos da vida cotidiana, dando a impressão de alguém que vinha não de uma terra estrangeira, mas de uma época estrangeira. Imaginava-me sentado ao redor da fogueira exibindo minha fala esplêndida e sofisticada, depois de ter fumado a erva potente do Jorge, olhando para a cara dos outros enquanto se davam conta de que a dificuldade que eles tinham em me entender não dependia do meu sotaque ou da minha ignorância, mas da distância deles do próprio idioma na sua forma mais rebuscada. (p. 22)
Adam tropeça vacilante pela via de mão-dupla ininterrupta que é entender uma segunda língua e ao mesmo tempo ser entendido enquanto falante forasteiro, assim como viaja pelas diferenças de contato com o espanhol pela prosa ou pela poesia, investigando menos as possibilidades do que as impossibilidades de cada gênero. Seus pensamentos são pré-ensaísticos, ensaios de ensaios à guisa de Adorno: convites a reflexões que nem sempre (nesse caso, quase nunca) implicam respostas. Ele prefere ler poesia em espanhol, porque enxerga em todo texto poético um quê de indecifrável, independente de sua língua de origem. Para ele, há sempre qualquer coisa de impenetrável no corpo do poema, ligada não ao idioma, mas a uma incógnita de outra ordem, mais antiga até que o conceito moderno de língua. Por isso a potência da poesia “só pode ser sentida como ausência”, e é nessa ausência onde ele se encaixa como nativo:
Para mim, era muito mais fácil ler poesia em espanhol do que prosa espanhola porque os elementos obscuros, a hesitação e a incapacidade que participavam da tentativa de vivenciar o poema eram sensações familiares, era o que conferia a qualquer poema um poder negativo, sua impossibilidade de me emocionar me emocionava pelo menos um pouco; minha incapacidade de dominar ou de me deixar dominar pelo poema em espanhol era tão parecida com minha incapacidade de dominar ou de me deixar dominar pelo poema em inglês que eu acabava me sentindo, nesse aspecto, como um falante nativo. (p. 23)
A preferência pela poesia junto à repetição do quanto ela é “o mais defunto de todos os veículos de comunicação” (p. 31) diz muito sobre a incomunicabilidade que o personagem carrega enquanto traço primordial. Porque anacrônica, a poesia seria sempre marginal. Fadado a eleger tal idioma obsoleto, Adam se torna também um ser à margem, na medida em que não se enquadra no centro das interações orientadas pela informalidade. Como uma cobra que morde a própria cauda, ele se agarra à poesia, mais especificamente às lacunas que ela promove, na esperança de atingir aquela profunda experiência artística por meio dela:
Disse a mim mesmo que, qualquer coisa que eu fizesse, qualquer coisa que qualquer poeta fizesse, os poemas sempre representariam para os leitores telas sobre as quais poderiam projetar sua desesperada fé na potencialidade de uma experiencia poética, o que quer que ela seja, ou pelo menos lhe dariam a oportunidade de chorar sua impossibilidade. Minha poesia, disse a mim mesmo, ofereceria ao público exatamente isso, [...] em sua incongruência e desordem, meus poemas eram informes, não tanto poemas quanto um acúmulo de materiais a partir dos quais era possível construir poemas, pura potencialidade à espera de ser articulada. (p. 48)
Enquanto acredita saber exatamente o que fazer para conquistar o que deseja, mentindo descaradamente para manipular pelas brechas da linguagem, desconsidera que não é o único a conhecer as artimanhas que ela oferece. Não é difícil vislumbrar a ligação de afeto entre o protagonista e a língua, cuja lógica ele transfere ao seu comportamento com as mulheres (ou talvez ao contrário, transfere das mulheres à língua): tanto em face ao idioma quanto ao amor, manifesta-se nele a “incapacidade de dominar ou de me deixar dominar”. Isso, porém, não o relega à superficialidade das coisas porque ele é profundo em sua incapacidade e projeta no outro a potencial profundidade que lhe falta. Poeta e tradutor em exercício, só reconhece sua voz na leitura do outro – e anseia por ela, que preencha os intervalos como quem interpreta o vazio entre as estrofes de um poema, o vácuo reservado à respiração rítmica do leitor. A disposição em versos convida a participação ativa de quem lê na construção do texto, e esse é o diálogo que fascina o protagonista, que ele transmite aos seus relacionamentos esperando que funcione. Do mesmo modo, enxerga o outro como um texto a ser traduzido; no entanto, faltam-lhe certa sensibilidade e entrega para isso. Nesse sentido, o romance coloca em evidência o antagonismo da prática contaminada pelo excesso de conhecimento teórico, inclusive pela frustração de Adam em não poder experimentar a tal profunda experiência artística que não se acessa pelo domínio idiomático stricto sensu, mas por elos emocionais que esse mesmo conhecimento linguístico o impossibilita de sentir.
Surge então o espectro da síndrome de impostor, forjado por um sujeito em tudo duvidoso, que considera as outras pessoas ao seu redor (sobretudo as mulheres) como impostoras, menores do que parecem. Como quando descobre, depois de um bom tempo e inesperadamente, que a mulher com quem vinha se relacionando intimamente publicaria um livro, era importante nos circuitos literários, uma tradutora muito mais competente do que ele pensava – e não tão apaixonada assim pelo poeta. Adam é um personagem neuroatípico que se automedica indiscriminadamente, ora tomado por falsa modéstia e empáfia, ora carregado pela certeza de sua inaptidão total. O diagnóstico de impostor, portanto, lhe cabe menos no sentido de fraude e mais no sentido de fingidor, com todas as sutis diferenças que cada uma das alcunhas reserva, principalmente para si mesmo, e assim também para nós. E já não dizia Fernando Pessoa que o poeta é sempre um fingidor (e não uma fraude, veja bem)? Quando se trata de um poeta-tradutor, então, o fingimento cabe em dobro. Somado à condição de estrangeiro, é triplo.
E são muitas as circunstâncias que fortalecem a imagem fingida de Gordon. Ele chama sua vida na Espanha de “projeto”, uma espécie de experimento em que pode provar novas formas de atuar, legitimadas pelo estranhamento comum aos descostumes do idioma. Diante dessa oportunidade de assumir uma nova casca, Adam finge ter pais que não tem, finge prestar atenção no que está sendo dito, finge entender menos o espanhol do que realmente entende. Sua incapacidade de viver uma experiência autêntica é reflexo do fingimento que ele usa como escudo, mas que acaba por ser espada a autossabotá-lo. Por mais improdutiva que pareça a insistência nessa tática, ela tem como raiz uma ameaça concreta: o temor do triunfo do real. O protagonista reconhece as falhas em seu modo de viver mas, tomado pelo medo paralisante dentro de um sistema favorável à eliminação de subjetividades como é o capitalismo, vê-se impedido de encontrar alternativas a ele:
Esforcei-me para pensar nos meus poemas, ou em qualquer poema, como máquinas capazes de fazer eventos acontecerem, de mudar os governos, a economia, ou apenas a sua linguagem, e o conjunto das suas funções sensoriais, mas não consegui imaginar isso nem me imaginar imaginando isso. Todavia, quando imaginava a completa vitória de todas essas outras coisas sobre a poesia, quando imaginava – pressentimento terrível – um mundo privado até mesmo dos pretextos mais idiotas para escrever poemas que permanecessem fiéis às possibilidades virtuais do meio, privado dos rituais absurdos como aquele do qual eu tinha participado naquela noite, então eu intuía uma perda inestimável, uma perda não de obras de artes, mas da própria arte, e portanto infinita, o triunfo total do real, e me dei conta de que em um mundo assim eu engoliria uma cartela inteira de comprimidos brancos. (p. 55)
Em entrevista ao Estadão, Ben Lerner diz que o protagonista de Estação Atocha “ainda não chegou lá, mas essa passagem, embora seja dita de maneira negativa, é também idealista – é a crença de que a função da arte é manter viva a possibilidade de imaginar outra coisa que não o status quo”. O problema de Adam está no desequilíbrio constante entre a subestimação da arte e a superestimação de si mesmo enquanto artista (com trocas frequentes entre os dois extremos), movimento vertiginoso moldado pela perspectiva de homem-cis-branco-rico-heterossexual, ou seja, em tudo privilegiado, e pela sua obsessão em traduzir o mundo o tempo inteiro e provar que o faz, rendendo comentários como “era uma resposta de considerável complexidade gramatical que descrevia a importância do meu projeto fazendo amplo uso do futuro do pretérito, do pretérito imperfeito do subjuntivo e do futuro do presente” (p. 27). Essa atitude descomedida dificulta não só sua própria empreitada como também soa desagradável aos leitores menos transigentes com personagens tão autocentrados – principalmente porque a busca pela genuinidade da própria vida é um incômodo clássico em protagonistas de romances, mas aqui se traveste em dimensões contemporâneas bem menos nobres que as de um Julien Sorel, por exemplo, estimulando a impressão de que alguma coisa no livro está desajustada (muito provavelmente, o protagonista).
Um dos momentos em que essa falta de “nobreza” de Adam se evidencia é o episódio do atentado à estação Atocha que intitula o livro. Até então, ele fora um indivíduo desconectado do meio, egocêntrico, como que um habitante irreal e desorientado de um mundo projetado. De repente, esse sujeito que buscava alienar-se sempre que possível, acompanhando de longe as notícias de seu país, à época governado por Bush, encontra-se muito próximo de um dos maiores ataques terroristas da Europa, involuntariamente carregado pela História, logo ele, tão resistente à dominação. Ele se torna o norte-americano perdido em outro continente, no meio de manifestações em Madri enquanto os EUA ocupam o Iraque, e o máximo que consegue se envolver nessa situação é mais uma vez analisar as possibilidades de sentido da linguagem, sondar o uso da palavra em massa, escutar o grito da revolta em sua uni-sonoridade que contagia e move uma multidão, completamente ausente de poesia, sem lugar para os espaços entre-estrofes, povoado e distante, completamente distante da profunda experiência artística. Como pode alguém tão tosco coletivamente ser um indivíduo interessante ao ponto de nos convencer a ler sua narrativa?
Esse é um dos vãos semelhantes aos da construção poética que Ben Lerner expõe em seu romance e, eu diria, o que dita certo tom irônico do livro. Diante de um tão presunçoso quanto invulgarmente interessante narrador, o leitor resiste em admitir que de um personagem antipático e apartado pode despontar algo estimulante, mas de fato ele indica coisas relevantes, sobretudo acerca da classe de estadunidenses a que pertence. Adam, que se define como “um mentiroso compulsivo, violento e bipolar [...] um autêntico americano [...] um drogado, talvez um alcóolatra” (p. 191) oferece uma visão de mundo muito rica em seus próprios termos, nos faz experimentar perspectivas dificilmente provadas com tamanha veracidade, de maneira tão vívida por meios tão displicentes – assim como o contrário também acontece, personagens cativantes podem ter nada a acrescentar, porque a literatura não se reserva a protagonistas heroicos ou apaixonantes e nem tampouco serve necessariamente para provar alguma coisa a alguém. E, no entanto, neste caso e por meio de uma figura drasticamente paradoxal, ela prova.
Estação Atocha mostra os efeitos da consciência ativa ao dizer coisas que não foram pensadas inicialmente na língua em que são ditas, de viver se adaptando em um ambiente adequado a uma linguagem que não foi a que nos moldou, demonstra as decorrências de tentar ler o mundo como se lê um poema, de escrever a própria história como se escreve poesia, plena de espaços em branco altamente significativos. Ben Lerner pode não ter criado um personagem exatamente cativante, mas criou um narrador que propõe uma mediação intrigante entre nós e o mundo, pelo conhecimento em maior parte adquirido pela prática da tradução. E, por mais que se possa detestá-lo, agimos exatamente como ele, lendo-o como um texto, sugerindo a seu respeito o que não nos foi afirmado. Talvez por isso há quem torça tanto o nariz: o que se prova neste livro é que se todo tradutor é um fingidor, todo leitor também o é – e este é o requisito básico para se chegar à tal profunda experiência artística.
Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
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