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O melindre nos dentes da besta, um livro feito de silêncios



Há sempre alguma dificuldade envolvendo a redação sobre obras que nos tocam profundamente. Dar conta de seus méritos sem que nossas emoções os sobreponham nunca deixa de ser complicado, e no caso do romance da carioca Carol Rodrigues, que me suspendeu do mundo durante a leitura, o impasse se acentua, uma vez que O melindre nos dentes da besta (7Letras, 2019) é um livro feito de silêncios — levando-me a ser minimamente breve em sua apresentação.


A história se divide em duas partes. A primeira delas, intitulada “Museu”, começa em um barco, com o relato de um personagem que foi condenado à prisão, sem que nós saibamos a princípio o porquê, botando-nos mais à vontade para nutrir certa empatia por este ser absurdamente desumanizado como preso num lugar onde os direitos humanos não tinham mais voz — também sobre essa justiça fundamental recai o silêncio. O protagonista Dodô nos guia pela narrativa no decorrer dessa seção inicial, mostrando-se no texto de forte carga dramática como maquinista da história, dirigindo a cena, observando e justificando cada ato que a compõe, fazendo-nos notar as coisas ao mesmo tempo em que ele as percebe, à semelhança de um fluxo de consciência (a despeito de sua ponderada ordenação), enquanto tece denúncias distendidas às circunstâncias, desesperado por qualquer humanidade e afeto. Sua sentença é o exílio, numa ilha onde as pessoas não falam e que por isso se arquiteta por meio de imagens, tão impactantes e inauditas que vibram insólitas, de um estremecimento estético que o narrador capta e descreve, como os “olhos que se afogam nas dobras movediças” — o afogamento uma abstração constante em seu solilóquio, à la Aurora de Murnau, filme mudo citado no romance —, ou a boca que “beija a água antes de engolir, um impulso do velho que eu vou ser, caso envelheça, o que dá beijos a esmo no ar”, e mesmo o teto da igreja, cuja descrição marca um dos muitos belos parágrafos do livro, bastante representativo de seu todo:


Espelhado em mim e do meu tamanho um homem de barba saltada e um contorno muito escuro nos olhos se deita de lado e descansa o rosto na mão, pode ser um árabe, vou chamá-lo de árabe, é coberto pela manta branquíssima e assiste ao que acontece à altura dos seus pés com anéis em todos os dedos. Na confusão de panos e joias e cobras e jarras e coisas vivas e mortas um torso de turbante segura por trás o braço da mulher de cabeleira vermelha, podia ser o amante antes ou depois do coito, é quadro antigo então é coito e já que estão nus, mas seria coito se fosse bom, o que se arma aqui é uma chacina, o punhal que ele vai cravar no seio de tulipa é só um detalhe, e do lado um outro torso enterrou o seu no peito de um cavalo, que olha pra ele de volta e com melindre, a grande dor do quadro é do cavalo e da outra mulher, não da ruiva, a ruiva não me dói, dessa de seios descobertos que olha nos meus olhos bem no centro da tela. Só ela vê que alguém vê tudo o tempo todo, só ela sabe que se aprisiona pra sempre no mais elegante massacre, e no exato segundo antes da sua vez ela sabe que é a próxima, o árabe também sabe, em poucas horas ela vai olhar outra pessoa ou ninguém se o banco ficar vazio, pedindo pra sempre o socorro em silêncio. (p. 32)

Adotar o silêncio como traço fundador faz a narrativa desviar das palavras. O texto descreve evitando termos que simplificam pela mera nomeação, perfilhando a descrição por excelência, muito mais atento ao que apresenta e que por tal razão se faz deveras particular. Desse modo, qualquer feito contado por ele é sempre inédito, ainda que possa parecer banal, pela maneira de narrar destacando em pormenores o singular, o inabitual que o diferencia. Nas perambulações pela ilha silenciosa, perturbadas pelo badalar de sua consciência determinando o ritmo do relato, Dodô é invadido por vislumbres de um passado que o humaniza e revisita eventos da própria vida, como o abandono da mãe, Aurora (alô, Murnau!), quando ele ainda era uma criança, e a lembrança da primeira vez em que se perdeu dos pais, num museu de teto alto, tema de um dos capítulos mais deslumbrantes da obra. Nessa ocasião, Dodô se distancia dos pais e acaba indo parar numa sala do museu onde se expunha a escultura de Ugolino e seus filhos; essa figura altamente perturbadora, de um condenado ao isolamento e à fome junto dos rebentos que oferecem seus corpos como alimento ao pai, desconcerta o protagonista, que à época não conhecia a história de Ugolino mas se impressiona muito com as feições da estátua. A origem de Ugolino nos é apresentada junto dos efeitos que a experiência teve sobre Dodô, de provar pela primeira vez três dos estados que lhe desenhariam a vida e também a narrativa: a culpa, a vergonha e um certo medo do pai, tanto do seu quanto das demais reproduções paternas, a fobia à representação pátria relacionando-se ao crime que ele cometeu. Um dos efeitos dessa vivência é uma reflexão sobre o sadismo; para Dodô, aquele que visita exposições artísticas teria prazer em observar o estado emocional alterado dos outros, e por isso o museu seria o templo maior dos sádicos, “onde eles se encontrariam e brindariam com champanhe ao terror que conseguem provocar”. Num movimento travessamente machadiano, essa constatação coloca tanto a autora quanto seus leitores na posição de sádicos, na medida em que nos entretemos com os personagens transtornados que ela cria.


Aquele que pensa passa pelo meio dos homens como por entre animais. Lembra-te particularmente de que não podes ser juiz de ninguém. Porque na Terra não pode haver juiz de um criminoso sem que antes esse mesmo juiz saiba que também é tão criminoso como aquele que está à sua frente e, mais do que ninguém, talvez seja o culpado pelo crime que tem diante de si. Se tu mesmo pecas e ficas te afligindo até a morte por esses pecados ou por algum pecado que cometeste de repente, alegra-te pelo outro, alegra-te pelo justo, alegra-te porque se pecaste em compensação ele é justo e não pecou. Tenho pensado: o que é o inferno? E julgo assim: É o sofrimento de não mais poder se amar. O naufrágio é um grande nivelador, assim como a pobreza. O mundo está cheio de ilhas. E por isso o homem nobre impõe a si mesmo o dever de não envergonhar; quer ter recato perante tudo o que sofre. Que benefício existe numa vida em silencio? Vem. Conversemos através da alma. (p. 133)

A segunda parte da obra dedica-se às origens do mutismo da Ilha do Calado e à história de seus moradores. Quanto mais nos acomodamos no habitat ilhéu embatucado, mais nos é dado compreender o estranho envolvimento emocional entre todos os habitantes daquele lugar, mesmo os coadjuvantes, cujos destinos se cruzam de maneira mágica, determinados por anátemas e absurdos, o que certamente aproxima a obra do realismo mágico latino-americano, mas com uma distinção admirável. O texto de Carol Rodrigues se arranja sob camadas de silêncio que somos levados não a descobrir, mas a penetrar; a malha narrativa não se desnovela exatamente, nós é que nos entranhamos nas urdiduras dos acontecimentos, cada vez mais envoltos pelos seus revestimentos, como hóspedes de uma aldeia muda, aos poucos nos familiarizando com os muitos mistérios que adensam o romance. Com autenticidade radiante, Carol Rodrigues concebe uma trama guiada por temporalidades oníricas que convertem seus personagens em seres etéreos, criaturas marcando a dentadas nosso imaginário de leitor assombrado. Acima de tudo, estampa-se na obra a bestialidade melindrosa da vingança dos delicados que, suscitada por eventos extraordinários, imprime um livro de arrebatamento invulgar, de veemência recôndita e absoluta. Recuperando um de seus trechos, “o inexprimível nunca foi de todo mundo”, o que é uma verdade, e por isso tão mirífico esse seu modo de tomar o inexprimível como matéria-prima de um livro que, taciturno, diz-se tanto. O melindre nos dentes da besta é um verdadeiro primor da literatura brasileira contemporânea.


Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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