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Belhell e a literatura-cassino de Edyr Augusto



Cinco anos depois do lançamento do aclamado Pssica (2015), Edyr Augusto publica Belhell (2020), mais um romance editado pela Boitempo. Ainda ambientado no crime e na violência belenenses, Belhell concebe uma intriga que engloba três protagonistas, Gil, Paula e Marollo, articulados pelo entremeio de coadjuvantes com trajetórias igualmente eletrizantes e decisivas ao andamento do enredo. Como no romance anterior, suas histórias se encadeiam de modo inevidente, comprovando a astúcia do narrador responsável por uni-las — narrador que neste livro é também um dos personagens. Simultaneamente confrontado e auxiliado por Bronco, mandachuva do território criminoso explorado por ele, o escritor inominado de Belhell se submete a acordos infratores e a caminhar de olhos vendados em prol do narrar. Em paralelo, Edyr divide com ele essa parcela de transgressão literária e audaciosamente nos abre as portas de um dos grandes símbolos da clandestinidade brasileira: o cassino.


Alguém me tocou o braço. Mano, o chefe quer falar contigo. Um carro ao meu lado. Vidros escuros. Abriu a porta. Me empurraram antes que eu pudesse esboçar defesa. Desculpa aí, cara, é só uma conversa. [...] Tiraram a venda. Subimos. Taí, chefe, o dr. Escritor, como o senhor pediu. Ninguém aperreou, até contamos piada, tudo limpeza. [...] Porra, Escritor, me diz o que é que tu tás querendo, porque eu não deixei ninguém chegar junto por respeito. Gente letrada, gente boa, sabe como é. O que é que tu estás procurando? Expliquei para o Bronco. Era pesquisa para um livro. Não tinha nada a ver com os negócios dele nem iria botar nada que comprometesse. Escrevo ficção, cara, fica tranquilo. Então, tá. Vou confiar em ti. Mas tu já me conheces, e no meu negócio eu não brinco nem sou educado, tá? (p. 10-11)

Cenário ativo, o cassino age como presença motor dos acontecimentos narrados. Belhell é atravessado por episódios de jogatinas e apostas, mostrando o quanto aquilo que se chama de “sorte” na verdade não passa de uma manipulação bem disfarçada pelos verdadeiros donos do baralho. Ao erguer uma casa de jogos dentro do livro, Edyr ergue o livro como uma casa de jogos, sagazmente transformando leitores em apostadores, ainda que muitos sentem-se à mesa inadvertidos de sua participação na disputa. Nesse sentido, assim como Marollo comanda as rodadas de pôquer sem que os jogadores percebam seu controle, o autor paraense também domina a narrativa e nós leitores assumimos o risco, conscientes de que é dele a vantagem de lançar as cartas (que não são distribuídas de uma só vez) e desconhecendo a totalidade dos mecanismos dos quais ele se vale para assegurar sua vitória. Felizmente, Augusto é o tipo de autor que se expõe aos riscos das partidas literárias e deixa que seus personagens sigam livres cursos, surpreendendo-se conosco frente aos destinos reservados a cada um deles.


Belhell tem a carga rítmica da oralidade característica dos grupos marginais que retrata. Essa espécie de melodia periférica afirma a brutalidade da narrativa, como fruto da raiva germinada em personagens que guerreiam numa cidade-inferno para se sustentar onde tudo obedece à lógica da mercadoria, inclusive seus próprios corpos. A predileção por protagonistas malditos nasce da potência que só sua característica ira é capaz de manifestar. A linguagem reagente traduz o ímpeto preciso dos impulsos de morte e violência dos que estão sujeitos às condutas de exploração e corrupção dessa face de Belém do Pará. Aqui, sobreviver pressupõe agilidade e por isso não há tempo para rodeios linguísticos: as frases são curtas, ríspidas e diretas, semelhantes a um tiro de mão bem-treinada, e favorecem a atmosfera teatral da obra. O cassino (e, por conseguinte, todo o romance) é como um palco que não viabiliza ensaios, como um espetáculo de forças dramáticas não improvisadas, mas definitivas em sua única chance.


Royal. Esse é o nome do cassino. Orgulhoso, Clayton inaugurou-o com a presença do governador e do prefeito, além do ministro da Saúde, que trouxe consigo outros políticos. Mais do que isso, gente com dinheiro. Com os olhos faiscando pela roleta, bacará e pôquer, lógico. Fora o salão, havia duas salas especiais para o que se chama de roda de pôquer. Jogo no cassino é pôquer bancado. A casa banca. Mas só se senta quem pode. Principalmente à mesa do dr. Marollo. Com ele, as grandes fortunas da cidade. Uma vez veio o sr. Olavia, dono de casa de câmbio ali na João Alfredo. Perdeu dez milhões de reais. Pagou, calado. Voltou um mês depois querendo recuperar. O jogo não gosta disso. O humor do jogo é instável. Ele quer alguém para duelar. Alguém que pense matematicamente, probabilidades, mas principalmente quem encare os adversários e anote, mentalmente, seus mínimos gestos, para dar o bote no momento certo. (p. 59)

Se o escritor dentro da obra precisa convencer criminosos de que seu assunto é escrever ficção e só, os limites entre real e ficção importam pouco ao leitor de Belhell. O que interessa de fato é a verossimilhança com que se levanta essa grande casa de lances que é o livro, cujas paredes, inventadas ou não, são palpáveis e constroem o labirinto estável que percorremos, esbarrando em surpresas aqui e ali. Assim é a literatura-cassino de Edyr Augusto, em busca de um adversário à altura, que aceite o duelo. Como em toda boa tabulagem, é preciso ter fichas para jogar — e fôlego para não abandonar a mesa antes que o jogo termine. A recompensa certamente vale o risco da aposta.


Assista à entrevista do autor para o LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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