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"Flores de beira de estrada", a vida como acaso e absurdo



Flores de beira de estrada (Laranja Original, 2019) começa como quem não quer nada: um casal apaixonado sai de uma festa em direção a casa de campo onde aproveitará o restante do final de semana. De repente, um trágico acidente marca a primeira reviravolta do impressionante romance de estreia de Marcelo Soriano, no qual tudo expressa que os grandes mestres da existência humana são o acaso e o absurdo. O que parecia só mais um início banal, antecipando talvez uma espécie de thriller sobre as consequências nefastas de uma casualidade sobre a vida de um homem comum, se converte em um belo e inusitado enredo, no sentido mais estrito da palavra, e se esperávamos o retrato de uma queda, recebemos em troca uma quebra de expectativas, tal qual o protagonista; no nosso caso, porém, essa quebra é positiva, já que em vez de um previsível movimento linear contínuo de descida do protagonista Guime ao fundo do poço, temos uma movimentação muito mais agitada de sobe-e-desce. Dessa maneira, sua estrutura reproduz em significativa medida os passos condenados de Sísifo, com a diferença de que a Guime é dada a oportunidade de carregar sua rocha por várias montanhas. O que se altera, então, é o contexto – o contrassenso é sempre o mesmo.


O início providencialmente contraído da narrativa rapidamente é transformado em tensão absoluta. Seus acontecimentos se moldam por uma excelente narrativa, da qual participam alguns personagens fascinantes de suposta superfluidade, como a mãe de Guime, que logo após o incidente incorpora Penélope e seus novelos enredados e compõe uma releitura moderna da contadora de histórias. Como narra bem esta mãe que “misturava o experimentado ao contado, o palpável ao sonho, completava histórias que derretiam” (p. 21). É admirável quando ela assume a fala e complementa as descrições do narrador, numa sinergia excepcional que desponta no leitor o desejo de que ela continue em cena. Ainda assim, mesmo quando a figura materna se ausenta, a narrativa de Soriano se mantém atrativa, farta de momentos de entusiasmo, frases curtas e longos trechos verdadeiramente deleitantes de ler e acompanhar, numa prosa sagaz que captura as circunstâncias de modo que tudo, inclusive as caracterizações das personagens, se arranja em elemento narrativo, bem tratado pelo ardil de quem se dispõe a conquistar cúmplices.


As flores de beira de estrada intitulando o romance logo apresentam sua faceta irônica; é na beira da estrada que o protagonista tem a vida transformada e também este é o lugar relegado a ele. Assim, somente a beleza murcha, ultrapassada, improvisada e rara dos cantos lhe é dado aproveitar – e ele aproveita. As descrições que amparam seu percurso pelas margens da beleza, um tanto carregado de violências diversas, nos causam reações físicas e convidam nosso corpo inteiro a sentir as palavras, a marca de sua bengala pontuando também o ritmo do texto, como se as sensações pulsassem de tudo ao redor.


A primeira gota bateu no chão quente, uma parte foi desperdiçada num suspiro de vapor, o restante sugado em desespero. A água grudou no pó e deixou um ponto escuro. A terra tratou de devorar a sobra. Restou o buraquinho. Outra gota e outras; o ar ficando fresco, cada uma roubando parte da secura. Sumiam, bebidas pelo chão trincado, e mais surgiam. As marcas aumentavam. As folhas das árvores começaram a descer e voltar, primeiro sozinhas, depois juntas com o balançar de galhos inteiros. Veio o toque-toque da água nas telhas de cerâmica e no zinco do galpão. E cresceu, tudo junto até o molhado engolir o seco. E o dia imitou a noite; um raio desenhou no céu a raiz de uma árvore. E despencou de vez, sem dó. (p. 134)

O deslocamento de ambientação, do espaço urbano ao rural para um reencontro tardio com o pai, marca a segunda parte de suas desventuras e abre caminho às tendências estoicas contra as quais Guime luta antes de acatar. Ali, no interior de Goiás, ele aos poucos deixa de brigar contra as tarefas sisíficas que caracterizam a vida e, na falta de algo melhor, se entrega ao soberano nonsense, assumindo as incertezas como parte do viver. Dessa maneira o protagonista passeia por múltiplos níveis de experiências e lugares, gerando o retrato de um salto vertiginoso em direção à sorte. Todo seu destino é definido pelo acaso, pelas heranças, por jogos de azar que ele vai aprendendo a jogar, reconhecendo importâncias e desimportâncias a cada lance. Abrindo mão do controle sobre a vida, ele aposta tudo pela leveza de abraçar o absurdo como seu. Só então, ao aceitar os desatinos inerentes ao existir, sem contudo dispensar desejos que lhe são essenciais, finalmente conquista uma espécie de liberdade que, se não dá sentido à realidade, ao menos a torna mais suportável e até emocionante.


Despertou de madrugada, uma mancha azulada lambia o chão para além do terreiro. A lua velara seu sono. Sentia o corpo mais leve do que nunca. Uma das colunas que sustentava suas crenças se rompera e as certezas escorriam inclinadas. Acabara de viver algo determinante, forte o suficiente para sufocar quaisquer veleidades, mas o sentido real lhe escapava, percebia só a oposição a tudo que o havia movimentado até então, ao que supunha importante. Não encontraria sozinho as respostas, ainda não tinha as peças para montá-las. Soube que era a hora de partir. Fora tocado profundamente, mas não pertencia àquele lugar, não servia para isso: para o não dito; podia estar pronto para viver sem raízes, mas incapaz de viver sem palavras. (p. 149)

Marcelo Soriano escreve muito bem e suas personagens mulheres são deslumbrantes, em camadas tão profundas que o próprio protagonista parece incapaz de decifrar, garantindo vários dos melhores momentos do romance com suas participações, ainda que frequentemente sejam elas as porta-vozes das desgraças. Flores de beira de estrada é um livro empolgante, cujo fervor não decai em nenhum momento e que, ao contrariar formalmente a lógica do absurdo que rege a existência humana, surpreende o leitor com a experiência de entrar em contato com uma obra de estreia tão consistente e bem articulada, mais cativante que seu próprio herói, e que joga conosco do início ao fim – assim como faz a vida.


Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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