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"Morrer de amor", de Natália Bravo: literatura ou memória?





Annie Ernaux é uma escritora francesa cujos trabalhos se destacam, sobretudo, pelo tratamento da memória como elo entre o pessoal e coletivo. Um de seus livros mais lidos, Os anos, uma autobiografia impessoal, era a leitura de cabeceira da autora Natália Bravo quando ela decidiu tomar as próprias lembranças como matéria narrativa e escrever Morrer de amor (Paris de Histórias, 2021), obra que, à sua maneira, também passeia entre a memória e a história.



Transitando pelo pessoal e pelo coletivo, que deixa de ser mero cenário ou elemento acessório e se inflige sobre o texto, a narradora, mesclada à figura da autora, vale-se de nomes e lugares verdadeiros para construir uma obra com ares de realidade, assumindo-se simultaneamente sujeito histórico e indivíduo independente que caminha pelas trilhas da História — essa que, no caso de Bravo, é assaz especial, uma vez que tanto a autora quanto sua personagem homônima são historiadoras e trabalham em contato direto com o tema.


Um dos primeiros locais visitados em seu exercício de relembrar é o seio familiar da protagonista, que não passa pela sedutora romantização do passado, mas pelo contrário, é encarado com maior lucidez, quase como se a distância temporal garantisse a nitidez que o presente não assegura. Revisitando-o, ela adquire ciência do peso da responsabilidade familiar sobre a formação do eu, sem deixar de considerar a família como parte de determinado contexto histórico-social que, em grande medida, determina seu funcionamento e tudo aquilo que se espera dela. Natália nos dá acesso a pequenos portais da intimidade que a História sozinha não pode alcançar. Detalhes do convívio doméstico com o pai militar, com todas as ambiguidades emocionais que tal vínculo provoca, é um dos exemplos disso.


“A família. É sempre ela. São sempre eles. A complexidade do mundo, a diversidade humana. A alegria, a tristeza. Os nossos sucessos e os nossos fracassos. Tudo isso cabe dentro desse mesmo quadrado: essa construção nuclear e asfixiante a que demos o nome de família. Era certo que meu ‘desajuste’ se devia à relação disfuncional dos meus pais. Um casamento malfeito leva a isso. A uma criança malcomportada. Que desafia. Contraria. Desestabiliza. Eram eles, os responsáveis pelas minhas faltas. Meu pai. E minha mãe.”

Se no início do percurso da protagonista pela própria vida Ernaux aparece a título de comparação, com o decorrer da narrativa ela passa a ser mais do que apenas um ponto de partida, mostrando-se verdadeira guia do texto, com frequência retomada pela narradora. Isso invoca certo senso de identificação intenso em Natália, a tendência a transpor experiências e identificar-se com o outro também constatada em sua relação com Gabrielle Russier, aproximações que se estreitam com a chegada da personagem à França e que jamais se apartam da dimensão política que atravessa a existência de cada figura retratada. A todo momento o coletivo recua e retorna, é resgatado como qualquer coisa de sagrado.


Mas se em muito a obra da brasileira dialoga com a da autora francesa, há também o que nela se diferencia e ressalta. O amor que intitula o livro é a mais singular via que a narrativa percorre, sem dúvidas um nó de realce, um sentimento à parte do curso da História, transcendente. Professora, casada, dentro de um relacionamento abusivo que também ajuda a compor o retrato de seu tempo e do modus operandi das tradicionais relações heteronormativas, Natália se apaixona por um aluno do terceiro ano do ensino médio — e isso muda tudo. É a partir dessa relação no mínimo inusitada que a personagem chega ao Tempo; são esses tão particulares lampejos de afeto, mesmo nas lembranças de épocas duras, que a inserem na grande engrenagem coletiva.


“No fundo, era como se aquela relação a tivesse colocado em seu devido lugar: a grandiosidade do amor a lhe mostrar o quanto somos, todos, irrelevantes. O tempo das múltiplas durações, o longe e o perto, o muito e o pouco. Tudo? Ou nada? Confusão de sentimentos. E a sensação de que o seu tempo não é mais seu. Não te pertence. Não faz sentido. A irracionalidade do afeto sem limite. Os tempos do agora, do ontem e do amanhã embaralhados, a confundirem-lhe os sentidos. A lhe tirarem os pés do chão”.

Escrito numa linguagem fluida muito semelhante à das crônicas, Morrer de amor captura pequenas cenas da vida cotidiana, a nível pessoal e social, e faz das imagens aliadas da mistura entre o todo e o eu. Cada frase surge no texto como um retrato: curto e direto, transmitindo mensagens contundentes. A cada novo ângulo em que se apresenta no discurso, Natália reivindica o seu direito de reapropriar-se da biografia que lhe pertence, de negar o silenciamento a que por longo período esteve sujeita. Trazendo o passado para o presente da narrativa, ela demonstra como escrever sobre si pode ser uma forma de declarar-se sujeito da própria história, inserida na grande História que todos nós compartilhamos.


>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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