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FEBRE DE ENXOFRE: Lucidez doentia e grotesca de um poeta maldito




Yuri Quirino é um poeta, tão maldito quanto fora Rimbaud. Abordado por uma figura excêntrica, ele recebe um convite para escrever a biografia de Manuel di Paula, homem que lhe é desconhecido. O escritor, de mente obsessiva e delirante, depois de muitas tentativas de escape não vê outra saída além de aceitar a proposta de trabalho. Esse é o enredo básico de Febre de Enxofre, um dos terrores psicológicos mais interessantes da atualidade.

O que primeiro impressiona o leitor que entra em contrato com a obra é a sensação de proximidade que ela oferece. Embora os acontecimentos sejam no mínimo incomuns, eles ocorrem na nossa realidade de tempos e amores virtuais. Se um adulto ordinário já é passível de sofrer por conta da superficialidade das relações interpessoais da contemporaneidade, pelas extraordinárias velocidade e quantidade de informações, à mercê da ansiedade imposta pela pressão que surge de todas as partes, tais condições afetam um jovem poeta com força significativamente maior, geradora de uma febre alucinógena. É na febre dos poetas que adentraremos.


Faz-se evidente a confusão mental em que se encontra o narrador, incapaz de distinguir as coisas que se fundem e constituem perigosas ligações simbióticas. Para acompanhá-lo é necessário abstrair e aceitar dividir com ele sua visão de mundo. Isso é em grande parte possível pelo excelente uso da linguagem no livro. Em Febre de enxofre não há lugar para pudor e sentimentalismo e a língua acompanha essa promiscuidade, trazendo à estrutura do romance a indistinção que caracteriza a vida do protagonista. Por meio dessa junção, Yuri (e/ou Bruno) denuncia a superficialidade que permeia os relacionamentos. O autor aponta a futilidade do amor na atualidade que mede a extensão dos sentimentos pela quantidade de “eu te amos” enviados nas redes sociais. Escancara a hipocrisia dos meios literários e seus eventos exclusivos àqueles que produzem e consumem a chamada “literatura de canapé”. Essa lucidez passa a ser doentia e em certo ponto transforma-se em loucura.

Quando você entrega um segredo ao outro, você está o presenteando com um pedaço do seu abismo, da sua profundidade, e ao ceder o profundo, você cede um pedaço preto, gigante e grotesco da sua formação: este pedaço mórbido, cheio de lesmas, fezes, eletrochoques, arames e chorume é a prova do amor, do sacrifício, do companheirismo. Nada é mais pesado do que um segredo entregue ao próximo. (p. 198)

É a partir da marginalidade que Yuri fala. É lá que ele habita. Na primeira parte do livro, “Horror vacui”, ele ainda está em Campina Grande, sua cidade natal, ambiente altamente influenciador, hostil e tóxico. O horror ao vazio que dá nome ao capítulo é especialmente em relação à vagueza do meio social do poeta, ao vácuo interno que não se preenche com nenhuma das distrações oferecidas pelo município e suas reiterações, impelindo-o a buscar novos lugares. O convite de Manuel di Paula o seduz, até que ele finalmente cede e parte a Buenos Aires. Lá inicia-se a segunda parte da obra, “Un chacal en la pista de baile” e também a biografia da figura misteriosa. Naturalmente não poderia ser uma biografia convencional. Ao produzi-la, o que Yuri faz é na verdade escrever sua própria história, como se o biografado fosse uma parte dele que o obriga a encarar aquilo que estava enterrado, ignorado por completo. Trava-se uma guerra dele contra si mesmo em temperaturas cada vez mais elevadas. Mas é na terceira e última parte do livro que o desvario do protagonista alcança as maiores proporções.


As interpretações de Yuri vão sendo mais e mais escatológicas com o passar do tempo, e certamente atingem nível máximo em “Quimera”. Neste terceiro capítulo, o poeta passa a ser claramente uma arma de ódio e suas experiências, uma febre fétida e insana. O protagonista se vê em um ambiente que exige a produção de uma literatura que suprime sua própria identidade, ao mesmo tempo em que requer expressá-la; literatura que devora, destroça, destrói. A inserção de fotografias e ilustrações feitas por Bruno Ribeiro propõe uma imersão ainda maior do leitor no universo psicodélico do livro, onde é difícil considerar as coisas ao pé da letra porque não fariam sentido. É igualmente desafiador elucidar quaisquer simbologias na obra e seu caráter cíclico. O autor, que aparece como personagem, compõe o romance como um labirinto a fim de deixar o leitor perdido. Por outro lado, o leitor dispõe-se a não se perder, encadeando uma batalha promovida no interior do livro e gradualmente exteriorizada, assentando-se também na realidade do público que aceita participar da peleja.


Somos criaturas pequenas e cheias de desejos minúsculos. Queremos aquilo que todos querem. Amamos a mirada alheia. Adoramos aqueles que são rodeados de flashes luminosos de câmeras jornalísticas. Idolatramos aqueles que esticam a mão de volta para nós e com sorrisos diplomáticos – de cartilha marcada a fogo -, dizem coisas que não são reais, mas que em nossas cabeças fazem sentido. Que em nossas cabeças nos deixam em paz. Enganamo-nos e amamos cada segundo dessa mentira. (p. 162)

A atmosfera quimérica vara o livro em todos os sentidos, inclusive em seus aspectos gráficos. A capa muito bem pensada pela editora Penalux remete à ideia de hibridismo e antropofagia que são fundamentais para o enredo, reproduzindo a crueza, a insanidade e o vampirismo que tanto se destacam na história. Ao nos apresentar a uma juventude envenenada, Bruno Ribeiro não dá outro destino à humanidade que não seja o envenenamento progressivo de um meio onde até – e principalmente – o sexo é também tóxico e brutal. A desorientação do poeta perdido, incumbido da tarefa de escrever a biografia de um outro desconhecido, é a representação da perdição em que se encontra a raça humana pós-moderna, prole do esfriamento e da dissimulação das relações. Febre de enxofre, fruto da tese do autor para seu mestrado em escrita criativa, explora o grotesco para tecer um terror psicológico extremamente bem escrito, bem apurado e original, capaz de transportar o leitor a rumos nocivos e inimagináveis.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.

 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo sobre o livro no canal LiteraTamy:




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