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O animal humano em "Catálogo de pequenas espécies", de Tiago Germano




Mais uma vez sento-me em frente ao computador para escrever sobre Catálogo de pequenas espécies (Caos & Letras, 2021). Por dias ando com dificuldades de encontrar a ponta do fio da meada, a gênese do que me faça triunfar em levar alguém a se interessar pelo livro de Tiago Germano, especialmente neste contexto transtornado de pandemia. O fato é que com tanta coisa consagrada ainda por ler entre aquele calhamaço do Mann e o volume do Cortázar, e tão pouco tempo até o fim do mundo já em andamento, por que se dedicar justamente a essa leitura? Se temo não dar conta da pergunta é porque sei que os contos da tal coletânea de fato valem ser lidos, e portanto não me perdoaria caso não conseguisse transmitir neste texto essa convicção. Mas não só por isso. O temor é também uma parcela de reconhecimento, o comezinho medo de falhar (hóspede comum em gente como eu, humana) acenando entusiasmado em direção às histórias do autor paraibano, com suspiros de identificação que não deixam dúvida quanto ao caráter mordaz dos escritos. Deles desprende-se uma verdade tão infeliz quanto absoluta, facilmente apreendida por qualquer inteligência artificial minimamente esclarecida: humanos são seres horríveis.


Ao fazer da ficção uma ferramenta taxonômica, o livro se debruça com especial atenção sobre os animais domésticos, principalmente sobre o bicho-homem em seus espécimes mais rasteiros, protagonistas ideais de contos que zombam da racionalidade, essa que supostamente nos alçaria a patamares superiores aos de outros seres do mesmo reino. Germano brinca com a nossa pretensão de saber tudo, situando seus personagens banalíssimos e também os leitores em circunstâncias que beiram o nonsense, diante das quais todo raciocínio lógico é irrelevante. Priorizando os instintos à razão, assim ele abre espaço ao animalesco que ilumina a obra, revelando o quanto “a gente esquece que são animais [...] e que a natureza não cabe num apartamento”. Um dos tipos preferidos do autor é o famigerado “cidadão de bem”, cujos privilégios são fortemente ironizados pelo bom humor — um tanto cáustico — das narrativas. É sobretudo neste transformar em literatura os momentos mais inusitados das vidas medianas de criaturinhas rasteiras, desimportantes, de comportamentos condizentes aos padrões do hoje, onde mora a graça que permeia os textos.


A contemporaneidade, aliás, aparece muito bem assinalada na obra. Contrariando o senso comum que imediatamente torce o nariz à qualquer marca temporal em produções artísticas, Germano mostra-se consciente de que há vantagens substanciais na datação literária e sabe como utilizá-las de modo a converter o pontual em condutor de questões atemporais. Sem medo de encerrar-se em um período específico da história humana, “Continência”, um dos contos mais consideráveis da coletânea, começa com menções diretas a Jair Bolsonaro, faz referência ao Facebook e à série Diários de um banana, e daí desemboca na constatação amarga e cabal de que as pessoas adultas são mesmo difíceis de entender (pra não dizer horripilantes em suas intolerâncias). Nesse conto, o narrador manifesta igual interesse pela família Kennedy e pela sua, nivelando o raro e o trivial, mais ou menos o que se faz no livro inteiro: capturar, como um Dan Farrell ou um Bob Jackson, o instante exato em que algo de inédito acontece na vida das personagens, alçando-as ao extraordinário. Com frequência as narrativas terminam em suspensão, como que delimitadas pelas bordas de uma fotografia, emolduradas e expostas num grande museu de espécies diminutas.

Em um Brasil cada vez mais disparatado, Germano contesta a ideia contraproducente de que a realidade inviabilizaria o fazer literário e desafia a noção de que o real há muito superou a ficção absorvendo-o em sua criação para que ambos caminhem juntos, explorando a sério o potencial literário do que existe além das páginas. Ele engaiola o absurdo da realidade e o domestica pela literatura. Mais vultoso do que isso, — e daí brota o espantoso sorrisinho de canto que me complica a tarefa de dar conta do livro — mostra que nesse catálogo zoológico de seres miúdos, domáveis pelo bastão da escrita, estamos enjaulados todos nós.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.



Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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