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As duas partes de si no tempo: "Ambidestria", de Paula Novais Ferreira


Uma pessoa andando com as duas mãos para frente

Ancorado numa epígrafe woolfiana que remete a duas faces opostas – e estreitamente unidas – do amor, Ambidestria (Urutau, 2022), de Paula Novais Ferreira, é um livro de contos que esquadrinha a presença de traços antagônicos num mesmo ser. Da mãe que deposita os dentes das filhas num relicário de prata, como quem preserva algo da própria meninice já terminada, à astronauta alemã de pais brasileiros que se apaixona por um alemão filho de imigrantes turcos, as protagonistas das narrativas estão sempre exercendo a destreza de lidar simultaneamente com emoções distintas, que exigem certo comportamento emocional de quem sabe se virar habilmente com os dois lados de si.


O livro apresenta uma divisão bastante tradicional, classificando os textos em três conjuntos: passado, presente e futuro. A primeira parte reúne histórias que ocorrem em tempos pregressos ou são invadidas por lembranças do que já foi. Algumas delas sustentam-se numa linguagem remota, em espaços de aldeia, e descrevem costumes antigos mas ainda enraizados, responsáveis pelos destinos conservadores de muitas pessoas aprisionadas a determinados papeis. Outras arriscam experimentar a mescla de ficção e realidade, como é o caso de “Pentimento”, que reproduz uma carta de Renoir, supostamente escrita em 1919, a seu amigo Bazille, também pintor. Os dois compuseram retratos um do outro em suas carreiras artísticas, e a intimidade desse afeto é explorada no conto pelos vestígios que a relação imprime no trabalho do renomado artista impressionista. Revelar a intensidade que uma presença afetiva pode alcançar, resistindo ao passar dos anos, é um dos feitos da obra.



Capa do livro Ambidestria, de Paula Novais Ferreira

Também participa do conjunto do passado a narrativa que intitula o livro. “Ambidestria” conta a história de um casal que viveu na década de 1930. Ambrósio, homem crente nas palavras, é dono de uma livraria e está à espera do décimo filho com a companheira Odessa. Seu desejo é que o bebê seja nomeado a partir de uma junção dos prenomes parentais, a que deve ser acrescida uma homenagem a São Judas Tadeu, padroeiro do dia do nascimento da protagonista Ambidessa Judite, uma menina canhota que se vê impedida de escrever com a mão esquerda na escola por uma crença supersticiosa na “canhotice” das bruxas. A intolerância violenta dessa impossibilidade de manifestar-se livremente faz com que a garota desenvolva a ambidestria, e uma eficiente competência em escapar pelas beiradas, sempre adaptando-se para exercer sua liberdade dentro dos limites do que era permitido às mulheres naquele período. O conto mantém-se coerente a essas limitações e, numa demonstração indubitável da maleabilidade de Ambidessa, consolida-se como exímio representante do grande propósito que o livro busca construir, a reprodução do indivíduo em duelo contra as forças que oprimem sua subjetividade. Desse modo, o sentido de ambidestria se expande à alegoria, reproduzindo-se, em alguma medida, em todos os textos, no desenvolvimento das habilidades de seus personagens para movimentarem, com igual competência, todas as suas partes em prol de si mesmos.


"Chegando em casa, Ambrósio avistou pela janela da cozinha os filhos mais novos brincando no quintal, enquanto suas irmãs mais velhas ataviavam com rendinhas o mandrião de organdi que fora usado no batizado de todos os nove filhos. Como era bom ser criança e ignorar o alcance de certas tragédias, pensou Ambrósio, recordando-se da morte do quarto bebê, seu primeiro filho homem. Desde aquele dia, ele se tornara um tanto descrente de que coisas boas pudessem lhe acontecer, a menos que de fato acontecessem. Apesar disso, tocou a vida adiante. Como cabia aos homens do seu tempo. Quando a melancolia rondava, ele olhava para o outro lado e partia para sua livraria." (p. 19)

Ainda entre os textos do passado está o premiado pela União Brasileira de Escritores, “Rescaldo do São João”, cuja narradora transita entre o mundo real e o mundo dos sonhos, este sendo o único espaço onde ela consegue gozar de seus desejos. Isoladamente, o conto exprime a mesma noção unificadora do conjunto ao qual pertence, a ideia de corpo moldando-se ao tempo e costumes impostos a ele sem perder as rédeas de si mesmo. É sobretudo a partir desse drible que os enredos engenhosos se formulam. Findando a seção inicial do livro, “Jerônimo dos sinos” é uma das mais longas e complexas narrativas, quase uma novela, e suas várias intersecções promovem uma sensação de imersão das mais fortes entre as histórias, logo abrindo espaço para um novo grupamento: o presente.


Chamando atenção pelos relatos de situações-limite, verdadeiros momentos de virada na vida das personagens, a segunda partícula de Ambidestria começa por “Arrelienta”, protagonizado por uma galinha. O conto é um bom exemplar da pegada de humor que marca as narrativas; nesse caso, talvez, mais explícita do que nas demais ocorrências, embora perceptível em todo o conjunto como parte do estilo com que a autora o redige. A presença animal também é importante no conto seguinte, “Majestoso”, que gira em torno da breve relação de mãe e filha com um louva-a-deus, encontro quase clariceano, que assume ares existenciais e, mais uma vez, estimula a capacidade de atravessar os dilemas que se impõem sobre os sujeitos. A expectativa familiar e o embate entre o desejo particular e o desejo familiar também são obstáculos a serem enfrentados com destreza, não raro aproveitados como núcleo das histórias, como acontece em “Ecossistema da solidão”. Apesar de narrado em 1ª pessoa, sua protagonista não chega a se entregar totalmente, mantendo certo mistério muito positivo às tensões que sustentam o conto e aos efeitos da solidão incontornável que recai sobre ela.


Do conjunto do presente, vale destacar os textos “Feliz aniversário!!” e sua linguagem de crônica excessivamente destoante do tom mais sóbrio do livro – apesar das pitadas jocosas elencadas anteriormente – e “Volte para o seu lugar”, por tratar do atordoamento provocado pelo mundo do trabalho contemporâneo, campo onde a experiência de ambidestria como sinônimo de habilidade para escapar das opressões está muito bem representada. A parte do futuro, por sua vez, apresenta apenas uma narrativa longa intitulada “Hipotenusa”, que brinca com a ideia de porvir e com as possibilidades, inimagináveis no passado, de ascensão feminina no mundo – não que para isso aquela tal capacidade motora deixe de ser necessária.


Com tramas criativas e variações de linguagem que acompanham o passar do tempo que organiza as narrativas, Ambidestria apresenta uma profusão de estilos e narradores distintos, alguns mais convincentes do que outros. Temas como a velhice, a pandemia do coronavírus e a clausura são aproveitados com justiça, contribuindo para que a prosa da autora nos faça indagar “sobre o que nos faz pertencer”, como escreve Leonardo Villa-Forte na orelha da edição, ao agora em que vivemos. O livro aponta como o tempo abre vertentes, caminhos que indicam múltiplas direções. Para movimentar-se por suas vias ambíguas com alguma chance de sucesso, seja no passado, no presente ou mesmo no futuro, a habilidade da ambidestria é sempre bem-vinda.


>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


 
Foto de Tamy Ghannam

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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