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TRÍTONOS: INTERVALOS DO DELÍRIO, uma sinfonia de letras



Conhecido como o som do diabo em teoria musical, o trítono é o intervalo de três tons inteiros entre duas notas, formando o trecho mais dissonante que existe na música. A execução do trítono, proibida durante a Idade Média em função da sensação de instabilidade que ele transmite, gera uma confusão sonora de difícil resolução, podendo, conforme a lenda, “evocar demônios” e insânias. Sobre essa nomenclatura e suas reverberações apoia-se o primeiro livro em prosa de Teofilo Tostes Daniel, Trítonos: intervalos do delírio.

Composto por prelúdio e três longos contos, entremeados por interlúdios, que ocupam-se do desvario como essência, o que primeiro impressiona em Trítonos é sua excelência formal. Repleto de aliterações e construções sinestésicas, o cuidado com a organização das palavras que dão talhe às suas estórias deslumbra inesperadamente o leitor, através de um processo de ordenação semelhante ao da harmonia musical que sensibiliza um ouvinte despreparado. Com igual impacto sobre o legente surgem as personagens das narrações de Teofilo, projetadas vividamente no papel, como que de carne e osso, som e cheiro, visão e humanidade.


O conto que inaugura o livro, “Menina de Aruanda”, traz como protagonista a inteligente garotinha Michelle. Junto com a família, a menina frequentava desde muito criança um terreno de umbanda, onde aprendera a relacionar-se estreitamente com a música e com os rituais religiosos tão bem estudados e descritos por Teofilo na narrativa em questão. Michelle, figura já excepcional pelo seu bom comportamento e interesse pelos estudos, torna-se verdadeiramente extraordinária quando incubida por uma entidade a prestar um serviço através da escrita. Ao aceitar a incumbência, a menina obediente, em seus quinze anos ainda incompletos, passa a flertar com as representações de liberdade feminina que cruzam seu caminho. Subvertendo as ordens de sua família, Michelle abre as portas do delírio a partir da palavra. A garota faz do ato de escrever um ritual sagrado, íntimo e transformador, que transfere-se acidentalmente de seu interior ao exterior coletivo, abalando toda a comunidade da qual ela faz parte. O verbo, de maneira bíblica, é criador da loucura instaurada em Aruanda, lugar utópico que, não por acaso, na umbanda representa o paraíso da liberdade perdida.


Assim como a insanidade invade pelas frestas o primeiro conto, no segundo, “Gritos do açafrão”, ela também se faz presente. Um homem misterioso, Demian, tão fascinante quanto o de Herman Hesse, aguça a curiosidade de todos os vizinhos de seu novo apartamento. Dotado de grande argúcia, ele domestica os sentidos alheios, valendo-se deles como vias de acesso às profundezas de outrem, promovendo, através dessa invasão estrangeira, um encontro do outro com a própria identidade. O narrador manipula as sentenças do conto de modo a providenciar através delas uma reunião encantadora dos sentidos, arrebatando totalmente não apenas os personagens que cruzam o caminho de Demian, como também os leitores. Estes entrarão em contato com a personalidade apaixonante do protagonista que domina a arte da observação, do paladar, do olfato e, sobretudo, da música.


A alteridade aqui apresenta-se como um elemento perigosamente sedutor, de cuja potência Demian está ciente. A loucura e a violência, inicialmente sutis, quase imperceptíveis no conto, pouco a pouco conquistam espaço nas relações estabelecidas entre os personagens e, fomentadas pelo estímulo dos sentidos, transformam-se em forças geradoras, produtivas, esclarecedoras. O inesquecível e abrasador Demian doma a ferocidade e o desvario – pela culinária, pela música, pelas palavras ou pelo sexo – até que eles se convertam em aliados, instrumentos de alcance do outro e de si mesmo.


O controle do delírio tão bem efetuado por Demian foge por completo dos domínios do último conto, “Paisagens de sal”, no qual um psiquiatra tem acesso a três pacientes que dizem ter conhecido um lugar perturbador. A loucura enquanto patologia perpassa a estória não apenas como tema, mas também refletida na forma. A narrativa incômoda do último conto é ininterrupta, configurada por um fluxo contínuo de palavras e informações não comprováveis, e, no entanto, verossímeis, emulando o raciocínio ilógico dos pacientes transtornados, tirando o fôlego de quem lê. O médico protagonista possui uma espécie de fascínio pela insanidade que contagia o leitor, encaminhando-o pelo labirinto tétrico edificado pelo desvario com uma crença arriscada no discurso de seus pacientes.


Muito do desvario retratado no terceiro conto tem origem na impossibilidade do silêncio que proporciona as pausas necessárias para que se faça música. Profética, a última narrativa procura, em certa medida, narrar o indizível, traçar um mapa real de um local desconhecido, que pode tanto ser produto dos delírios quanto uma verdade invisível. O fato é que aquele que deveria trazer a solução à insanidade é contagiado por ela, transformando-se em um arquiteto da loucura.


Recheado de simbologia e referências históricas, religiosas, literárias e musicais, Trítonos: intervalos do delírio explora sinestesicamente os sentidos, dando destaque, naturalmente, à audição, ou à ausência dela. Apontando a beleza que há no caos, a música que há no silêncio, a razão que há na loucura, o livro relaciona constantemente elementos contrários até atingir um equilíbrio harmônico praticamente melodioso. Em conjunto com os textos de interlúdio, as três narrativas principais expõem a animalidade humana, trabalham com o incerto, com o inexplicável e com o temível, compondo, assim, uma sinfonia do delírio cuja unidade se estabelece pela insanidade e pelo som. O que pode ser visto como realismo mágico na obra nada mais é que, nas palavras de Teofilo, “um exagero da realidade”. Lê-la é como assistir a uma sinfonia de letras.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 


Assista também à entrevista com o autor no canal LiteraTamy:


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