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SE EU TE AMASSE, ESTAS SÃO AS COISAS QUE EU TE DIRIA: várias formas de escrever amor


Um dos princípios fundadores da arte é a tentativa de formatar e conduzir emoções essencialmente humanas. São incontáveis as manifestações artísticas que, desde os princípios dos tempos, dedicam-se a discorrer acerca dos sentimentos que movimentam criaturas. Dentre eles, possivelmente o mais explorado seja o núcleo de todos os afetos: o amor. Mas como configurá-lo, defini-lo e transmiti-lo através da arte de maneira minimamente original? Eis uma tarefa árdua e, também por isso, sedutora ao artista. Falar sobre amor é correr o risco de soar repetitivo, ainda que ele seja tão inesgotável quanto são os modos de amar, continuamente renovados com o surgimento ilimitado de novos amantes. Como solução ao desafio, cabe  investir em capturar o que configura cada amor inédito como algo singular, preservando em simultâneo sua partícula universal. Partindo desse olhar que acolhe o inigualável, Marco Severo constrói as histórias de amor que compõem o livro Se eu te amasse, estas são as coisas que eu te diria (Moinhos, 2019).


A primeira expressão captada por Severo é a do amor voragem, que intitula o conto inicial da obra. É o amor redemoinho, que carrega tudo, feito para os que estão dispostos a lutar em solo instável. Narrado em primeira pessoa, porque o amor se faz pelo amante, o texto delicado e potente traduz a melancolia de quem precisa abrir mão dos desejos em prol da concretude de uma emoção maior, capaz de tragar o solo firme como se este se tornasse líquido, sorvendo as regras da razão para fixar a imaterialidade da paixão que tudo devora, restando apenas a queda, o fall in love que tanto promove o mergulho fatal quanto o impulso para voos transcendentes. E se depois do turbilhão vem a calmaria, um dos contos que segue “Voragem” é a confirmação de que a tranquilidade pode surgir do tumulto. “Na imensidão, a procura”, melhor texto da coletânea, retrata a chegada inesperada de um amor singelo, mas forte, como produto de violentos chacoalhões pelos caminhos de um protagonista de vida primordialmente pacata, que traz no nome a mansidão que o caracteriza. Mariano Sereno, “que não sabia ler para além das vontades do tempo” (p. 22), personifica o amor sublime e aprende a leitura não só das letras, mas também dos gestos, dos silêncios e dos olhares que constituem o amor. Em movimento praticamente contrário ao do conto inicial, o amor aqui não desarranja as estruturas da razão, mas as fortalece, contornando um cotidiano até então meio disforme e despropositado. O sentimento que une Mariano e Ceiça é o “amor rabiscadinho”, que eterniza em seus traços a superação consumada pelos amantes.


“[…] O que não bastava em mim era te querer para além dos encontros furtivos, era querer esticar o braço na cama de madrugada e encontrar-te como quem segura no escuro um copo d’água, e te beber com a minha sede inequívoca. Nunca pensei em mim mesmo como chão de se pousar, tantas vezes te disse. Era todo eu terra incerta, assolada por relevos intransitáveis. E no entanto, eu quis. Eu quis, eu disse, não quero mais. E é por isso que caminho para fora do que restou. Porque meu caminho é atravessando a estrada, onde você não chega por ter medo dos caminhões que vêm e vão. Atravesso, não sem antes lançar sobre tudo o que me cerca um último olhar. Me volto para a travessia com a certeza de que a vida, a vida verdadeira, está mesmo longe de ti, em outro lugar.” (p. 15)

O autor explora outros terrenos do amor, para além de sua concepção romântica, passeando pelos sentimentos que conectam pais, mães e filhos, e também pela autoestima que sustenta os seres. Essas tantas faces do amor são ambientadas em cidades fictícias bastante reais, visitadas por todo aquele que já amou, denominadas Olinópolis e Henakandaya, nomes que evocam algo de familiar, ainda que longínquo. Territórios inventados pela perspectiva daqueles que amam e erguem átrios reservados aos afetos, esses distritos imaginários revelam-se de modo particular a cada um que os acessa. As cidades de Severo são, a um só tempo, paraísos e infernos próprios dos personagens, reinos proclamados pelo sentimento que reivindica a posse de um espaço no qual possa se manifestar em sua singularidade.


Marco Severo é bom em dar nome às coisas, ainda que estas sejam infindáveis e sem configuração definida. O título instigante e bem pensado do livro reverbera nos títulos dos contos que o compõem, também aqueles assaz representativos das narrativas que intitulam; é o caso de “Chegada ao local dos destroços” e “Pássaro que sobrevoa a dor”, por exemplo. Suas referências culturais, sobretudo as brasileiras que surgem vez em quando nos textos, são o reservatório do qual ele bebe para arquitetar a obra, assim como cada ser humano constrói sua ideia de amor e os meios de expressá-lo a partir de bagagem própria, com informações coletadas existência afora. A linguagem dos contos é tingida por belos aforismos elegantemente capturados, fazendo com que os textos reproduzam o ritmo cardíaco do amor apaixonado, com picos de emoção e beleza que garantem a vida em meio a um mar de relativa calmaria e incerta certeza. Há, de fato, a presença de algumas imagens e metáforas deveras clichês, mas isso porque existem amores clichês e Severo é fiel às verdades do amor.


A obra de Severo ressoa qualquer coisa de ancestral, algo mesmo da raiz do amor, como se cada uma das histórias fosse nossa. O autor captura o que há de fundamental nos afetos, o que aproxima distintas formas de sentir e os mais diversos enamorados, e faz com que seus contos estejam afinados à nossa essência. Os textos nos parecem conhecidos porque tocam em uma nota que encontra eco em nós, nos recônditos em que guardamos aquilo que alguns chamam de matéria fundamental do humano. Se eu te amasse, estas são as coisas que eu te diria é uma verdadeira prova de amor.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 


Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:

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