Quando a árvore mais velha morre, suas árvores-filhas, acostumadas a existir em determinada configuração, perdem a estabilidade e levam anos para se reestabelecer diante da ausência daquela que sustentava o ecossistema. Algo semelhante acontece na dinâmica de uma família quando um integrante indispensável parte. É sobre essa movimentação desorientada, imediata à morte de um familiar, que o livro Quando as árvores morrem (Claraboia) se debruça. A narrativa do primeiro romance de Tatiana Lazzarotto registra os passos de uma protagonista que acaba de perder o pai.
Intercalando em seu relato os momentos pós-morte com lembranças da infância, a narradora retorna à cidade natal para o velório do pai, grande astro ao redor do qual a família orbitava e cuja partida repentina implica um doloroso rearranjo astral. Um dos primeiros incômodos do luto da protagonista está na passagem do é para o foi nas sentenças sobre a figura paterna, o enterro da linguagem no presente. Logo que morre, tudo em relação ao pai realoca-se ao passado do discurso. Ele, que quando falava parecia colocar em ordem as palavras do mundo, passa a pertencer a outra esfera, quase impenetrável aos que ficam — mas ainda acessível pelo verbo. Nas palavras a filha busca a reordenação como quem dança em torno do tempo. Da possibilidade de driblar o sentido cronológico pela fabulação surge o lirismo que sobressai em vários trechos da narrativa, tão definitivo e autêntico quanto a morte que o origina, como se no espaço de uma frase coubesse toda a consciência do luto. A compreensão aguda dos efeitos do fenecimento inclui a precisão poética da dor de perder e reperder uma pessoa amada.
O desajuste da filha, solitária num mundo que continua apesar da morte paterna, é reforçado na cidade de Província. Ela, descrita pelo pai como um mangue, árvore que se move, e que havia procurado viver numa capital “grande o suficiente para me esvair no anonimato, a ponto de ninguém me saber”, tem sua intimidade invadida pelos hábitos interioranos dos quais, descobre, não pode se livrar com facilidade, uma vez que “pertencemos ao lugar onde estão fincadas as cruzes com os nomes de nossos mortos”. A morte do pai junto das tarefas póstumas direcionadas por ele à protagonista formam a estaca que a finca naquele lugar, definindo o horizonte de seu pesar.
As árvores estruturam o romance, manando a trajetória do luto que nasce nas raízes, move-se pelos troncos e galhos genealógicos, até chegar ao broto, fim e início de tudo, em correspondência ao ciclo da decomposição natural que é fonte de toda vida. As metáforas vegetais, adequadas à noção geral de família, têm contornos especiais na história, mais particulares, funcionando como um resgate do pai que enxergava nas árvores os maiores mistérios e compartilhava esse fascínio com os filhos. Observar a vivência das árvores revela à filha de que são feitas suas relações familiares e com o falecido pai. A morte do homem que atuava como Papai Noel, recebendo anualmente cartinhas de crianças do mundo inteiro e cumprindo sua função de modo tão comprometido que a fantasia se torna parte da verdade do seu eu, deixa incontáveis órfãos num dezembro em que, excepcionalmente, o pinheirinho de Natal perde qualquer brilho, porque Papai Noel deixou de existir.
Desdobrando-se em filamentos canalizadores das seivas emocionais que vertem a morte de um ente querido, o romance de Lazzarotto vislumbra algum consolo no caminho natural das coisas, na ideia de que a morte é matéria orgânica da vida. Publicado em um contexto pós-pandêmico que produziu tantos órfãos, Quando as árvores morrem insere-se no panorama das narrativas literárias que, de alguma forma, elaboram o luto desautorizado pela necropolítica brasileira, com a singularidade de apresentar a família como uma floresta, paisagem que se altera para sempre quando uma de suas árvores cai.
>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.
Assista à entrevista com a autora no canal do LiteraTamy:
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
Fiquei encantado com o texto. É belo, cálido, acolhedor como um bosque. Senti-me envolvido pelo tom nostálgico e triste da resenha sobre esse livro que despertou minha atenção.