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Múltiplas subjetividades nas narrativas plurais de Nafissa Thompson-Spires


Foto: Beowulf Sheehan.


Em meados do século XIX, James McCune Smith, primeiro afro-americano a se formar em medicina, escreveu uma série de histórias curtas retratando a vida de trabalhadores negros em Nova York. Inspirada em seu trabalho, a autora estadunidense Nafissa Thompson-Spires publicou em 2018 As cabeças das pessoas negras, reunião de contos de ambientação contemporânea protagonizados por norte-americanos negros de classe média alta que, por frequentarem espaços majoritariamente brancos, são relegados a uma espécie de não-lugar dentro dos EUA e enfrentam inúmeros desafios raciais em seus cotidianos. Imersos em um sistema de práticas sociais em que a raça, enquanto construção discursiva[1], provoca marcas simbólicas segregadoras, os sujeitos dos contos são acometidos pela sensação de dupla consciência conceituada pelo sociólogo Du Bois e recuperada por Winnie Bueno no prefácio à edição brasileira, publicada recentemente pela editora Nacional com tradução de Carolina Candido. Seus personagens são tomados pela impressão de “estar sempre a se olhar com os olhos dos outros”[2], mas Nafissa se apropria dela para transgredi-la, na medida em que ultrapassa os essencialismos que contaminam a visão da branquitude sobre os negros e acessa, a cada conto, a profundidade das mentes que descreve. Suas narrativas de ficção, portanto, se destacam pela pluralidade que imprimem.


Apesar das inúmeras referências à cultura estadunidense (devidamente contextualizadas pelas notas da edição) e ainda que dialogue com a produção de diversos intelectuais negros (alguns desses diálogos podem ser consultados em artigos como este de Luciana de Mesquita Silva, sobre as subjetividades negras em diálogo nos contos de Nafissa), o livro se vale de locuções simples e enredos descomplicados que culminam em mensagens nada simplistas, garantindo um louvável equilíbrio de composição. Os contos desafiam a superficialidade dos estereótipos e nos impelem a desafiá-la também, por meio de imagens e sentimentos gerados por uma voz narrativa altamente consciente de suas escolhas de linguagem a nos chacoalhar constantemente. A narradora de Nafissa não se dispõe a leituras condescendentes e nem tampouco se priva de julgar o leitor, dirigindo-se diretamente a um “você” que assume muitas formas. Ela comenta o narrar enquanto narra e deslinda as opções estilísticas que assume, e isso não por intenções didáticas, mas sim para fins de autodeterminação, reivindicando seus direitos de atuação na própria história.


Quando a minha cabeça bate no chão, eu não sinto a dor de primeira, apenas o impacto. Mordo a minha boca e sinto algo úmido, o sabor do meu próprio sangue ao mesmo tempo estranho e conhecido. A claridade das coisas me atinge. Vejo cores de modo mais brilhante, ainda que brevemente. Eu entendo. Às vezes, o inimigo que se parece com você é um treinamento para o inimigo que você mesmo representa. A violência que vem de dentro atenua a violência que vem de fora. Ela prepara você, cria calos, preenche buracos. (p. 76)

As cabeças das pessoas negras é um livro norteado pela multiplicidade. Suas histórias demonstram como o racismo, embora estrutural e embasado em uma lógica específica muito bem demarcada que nos permite reconhecê-lo, ao menos hoje, com alguma facilidade, afeta diferentemente as pessoas negras de acordo com suas subjetividades. Para tanto, Nafissa se debruça sobre os atravessamentos que atingem e constituem os protagonistas, cujas imperfeições são consideradas enquanto parte de sua humanidade e fazem despontar a noção de interseccionalidade, considerando também a diversidade de pautas identitárias que é sempre levada em conta nos textos –– há na galeria de personagens homens negros misóginos embebidos em masculinidade tóxica, que em determinadas situações oprimem outras mulheres; mulheres negras de classe média alta que reproduzem machismos; mulheres de origens latinas buscando conquistar espaço e autonomia em territórios estadunidenses e outras personagens que sentem na pele os impactos do colorismo que estende uma tacanha escala de opressão. Acima de tudo, as narrativas explicitam como muitas dessas falhas são decorrentes dos tratamentos racistas destinados a essas pessoas durante toda a vida.


Cabe ressaltar a forte carga visual que perpassa os contos e que facilitaria adaptações às telas como possíveis episódios de um sitcom (uma adaptação a que, diga-se de passagem, eu adoraria assistir). Esse caráter imagético dos escritos, que os faz flertar com outras produções artísticas, é um complemento à ideia de pluralidade que os sustenta, ainda mais reforçada pelas diferentes configurações do conto enquanto gênero que Nafissa explora. Um dos (melhores) textos, por exemplo, é em formato de missivas, reproduzindo uma troca de cartas, que começam passivo-agressivas e vão crescendo em agressividade, entre duas mulheres negras de classe média alta, também elas vítimas –– e reprodutoras –– do racismo misógino que as faz competir em vez de uni-las. Outro movimento interno digno de nota é a reaparição de personagens em contos variados, contribuindo ao entendimento da subjetividade como um processo contínuo, que perdura enquanto dura a vida de qualquer sujeito e que revela as multiplicidades que cabem no eu.


Em outras palavras, o livro inteiro é pautado pelo múltiplo e está a serviço da complexidade da negritude, provando que, ao contrário do que prega o essencialismo racista, ela se forma não como massa homogênea, e sim como conjunto de infinitas identidades. A estreia literária de Nafissa Thompson-Spires, vencedora de importantes prêmios literários lá fora, vai além do “rascunhar a mesma dor inúmeras vezes” porque escancara, fazendo uso de seu oposto, as intenções perversas do racismo em qualquer lugar do mundo: eliminar subjetividades.


>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.



Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


REFERÊNCIAS:


“Heads of the Colored People, de Nafissa Thompson-Spires: subjetividades femininas negras em diálogo”, de Luciana de Mesquita Silva: https://periodicos.ufsc.br/index.php/desterro/article/view/75868

[1] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. [2] DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Tradução de Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Editora Lacerda, 1999.

 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 
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