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DIÁRIO DA CASA ARRUINADA: entre real e ficcional, um lar em ruínas



A nota introdutória do Diário da casa arruinada (Penalux, 2017) se localiza nos limites entre a realidade e a ficção. Nela, um autor (que pode tanto ser Tiago Feijó quanto um personagem ficcional) afirma que o caderno que intitula o romance foi encontrado dentro de uma casa em ruínas e reproduzido com fidedignidade nas páginas que seguem. A premissa para a escrita do protagonista Quim, dono do diário que o leitor acessa logo depois da curta nota autoral, é sua tentativa de largar o cigarro. Diante dessa resolução, o escritor frustrado abre espaço ao seu desejo de escrever e produz um texto prosaico, dispondo-se a relatar os efeitos da falta da nicotina em seu cotidiano ordinário.


Mas logo no preâmbulo a narrativa denuncia que nela há muito mais que um mero retrato dos dias que Quim passa sem fumar. O personagem se apresenta, como que pressupondo um leitor às suas considerações, expõe a escrita como uma vontade maldita da qual não consegue se livrar – dando a entender que substitui um vício (fumar) por outro (escrever) – e põe-se a rememorar situações, revisitando terrenos instáveis e nebulosos como a fumaça do cigarro que pretende abandonar, obstinado em justificar através de subterfúgios infundados suas obsessões e dependências.


E, pensando nisso, me deixei levar por uma espécie de convicta vitória. “…sim, eu posso! É claro que eu posso… É só uma questão de decisão!”, pensei, estampando na cara o soberbo sorriso. O resto do dia, entretanto, me ensinou que minha decisão era fraca e frouxa, que minha decisão poderia, num só piscar de olhos meus, decidir a não mais se decidir e ficar assim: indecisa. O dia de hoje me mostrou que nem sempre sair é tão fácil como entrar, mesmo que seja por idêntica porta. (p. 49, 2017)

Tal movimento de autocontemplação abre espaço não apenas para a criação de metáforas poderosas – como o travesseiro “corruptor de sonhos” – mas também para a aparição de traços relevantes da personalidade do protagonista, propícios a uma leitura interpretativa fundamentada na psicanálise. A começar pela forma escolhida por Quim como seu meio de expressão: o diário, em tom confessional, em certa medida emparelha-se ao discurso do sujeito analisado – no caso do romance de Feijó, além da autoanálise do protagonista, há a análise que fica por conta do leitor. Em seguida, cabe apontar a importante aparição do personagem Ruivo assumindo a função de duplo, constante psicanalítica já bastante explorada no campo literário, e o vício no cigarro representando, segundo Freud, a repressão da sexualidade daquele que fuma. Mas de todos os temas pertinentes à psicanálise, no Diário da casa arruinada o que mais se destaca é a relação edipiana meio às avessas que sustenta, ainda que de modo predominantemente velado, todo o relato. Cada uma dessas particularidades apresentadas por Quim em sua narrativa é um tipo de máscara que esconde seus tormentos reais, a verdadeira razão pela qual ele escreve.


Acerca do cigarro? Nada. Hoje ele me deixou em paz. Ou fui eu que lhe ofereci descanso? De qualquer forma, só dei por ele poucas linhas atrás. Hoje não me inquietaram as privações do cigarro, porque padeci de outras provações mais severas. Madalena, esta manhã, nua como estava em nossa cama, foi o desespero do meu corpo, minha ânsia e meu vício, a mais tormentosa das minhas privações. (p. 58, 2017)

O que se dá é um movimento contínuo de revelação. A escrita do diário propicia o desmascarar da verdadeira ruína de Quim, imerso em sua escuridão esclarecedora. O homem, casado com Madalena e pai de Selene, cuja casa antes era sustentada pelo amor, com o passar do tempo vê a fundação de seu lar substituída pelos conflitos. As desavenças passam a garantir a união de suas relações familiares: sem elas, o que resta são escombros. É a casa arruinada. O resultado disso é um diário que gradativamente elimina a névoa produzida pelo fumo, bruma que impede o protagonista de enfrentar face a face os seus problemas. Pouco a pouco, Quim vai deixando o espaço da penumbra e do embaçamento para alcançar certa lucidez tenebrosa, mas necessária. Cabe ao leitor assistir à transformação do edifício em ruínas e lidar com o insistente eco ensurdecedor, causado pelos destroços violentamente lançados ao solo pela descoberta da verdade.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.

 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também à entrevista com o autor no canal do LiteraTamy:


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