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DESTERROS: A alteridade como caminho de desmarginalização do outro



Livro de estreia de Natalia Timerman, mestra em psicologia clínica pela USP, Desterros: histórias de um hospital-prisão traz relatos de sua experiência enquanto psiquiatra no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo (CHSP), única casa de saúde do estado disponível para o atendimento de presidiários. Nas histórias que compõem a obra, a autora resgata prisioneiros que, submetidos à condição de enclausurados, perdem qualquer coisa de humano e são condenados ao estado de expatriação gerado pela prisão.


O primeiro desterro descrito, e que será o fio condutor da obra, é o de Donamingo, oriunda da periferia de Luanda. Ainda em Angola, a mulher conhece o impacto da violência policial trabalhando ilegalmente como camelô, profissão decorrente da vasta miséria em que habita, além de sofrer na pele as sequelas de um conservadorismo social que, em determinada proporção, já tolhe sua autonomia. Ao receber uma proposta de serviço que lhe ajudaria consideravelmente em termos financeiros, a moça vem ao Brasil, sem saber que, na verdade, sua bagagem era produto do tráfico de cocaína entre os territórios angolanos e brasileiros.


O capítulo seguinte propõe uma transição, acompanhada pela bem pensada mudança de diagramação gráfica do livro. O território deixa de ser a África e passa a ser a zona norte de São Paulo, onde adentramos o CHSP tendo Timerman como guia. A partir dos casos selecionados pela psiquiatra, exibem-se as conjunturas precárias do local de residência dos presos e a animalização a qual são sujeitados pelo funcionamento do sistema carcerário. Perante o contraste entre homens mudos encarcerados e pássaros livres cantando ao redor, Natalia enxerga cada recluso como uma história asfixiada pelas pesadas celas. O olhar da autora sobre eles os humaniza, fornecendo-lhes certa solicitude da qual estão isentos e a qual muitos de nós, leitores, jamais experimentamos lhes direcionar. Pelos desterros desses dois mundos, Brasil e África, inicialmente tão distantes mas que curiosamente se interligam, é que a narradora nos conduz.


A impotência constante e desgastante de quem, fazendo parte do funcionamento do hospital penitenciário, constata defronte às irregularidades que não há “nada a se fazer quanto a isso”, é também a primeira sensação a acometer quem lê Desterros. O hospital penitenciário é como o reino do absurdo. A solução de Natalia para contrariar a inércia frustrada de quem assiste aos disparates do sistema carcerário (como a superlotação e a ocorrência de crimes dentro das próprias prisões) é contar a história de alguns dos presos e lhes oferecer certa visibilidade. Registrar suas existências é, em alguma medida, lhes prestar auxílio contra o alheamento ao qual estão fadados.


O receio contagioso que impera no meio social em relação a presidiários, baseado na ignorância e na falta de vontade e/ou meios para saná-la, aos poucos vai desvencilhando-se da narradora, sobretudo a partir do momento em que “depois de perceber que meus medos não se configuravam como perigos constantes e iminentes, houve espaço para este sentimento aparentemente deslocado, que consistia na descoberta óbvia e simples, mas grande, de que aquelas pessoas eram pessoas” (p. 25). Natalia afirma-se de maneira sincera como psiquiatra, cujo dever é amparar transgressores da lei, e expõe os dilemas éticos e morais que perpassam sua carreira, o paradoxo primordial que, inevitavelmente, em algum momento toma conta dos profissionais que ajudam assassinos, estupradores, ladrões, sequestradores… infratores, sim, mas acima de tudo, seres humanos. Junto à autora experimentamos o descobrimento da porção humana que reside em cada um deles e pela qual é válido trabalhar.


Trabalho árduo, sendo a prisão um espaço que decreta o fim da individualidade.  Em um ambiente que suprime os traços de identidade de quem quer que ali esteja, legando aos prisioneiros a situação de marginalidade, encontram-se minorias nas minorias, cujas condições revelam-se ainda mais débeis. É o caso das mulheres presas, que devem lidar com circunstâncias desconhecidas pelos homens, como a maternidade por trás das celas. Nesse sentido, a figura de Donamingo é como que a personificação do que pode haver de mais frágil dentro do sistema penitenciário: uma mulher negra, ludibriada, pobre, estrangeira, que desconhece os costumes e línguas locais e, sendo presa quando ainda gestante, deve tomar conta do filho recém-nascido – e prematuro – fora de seu país de origem. Pela narrativa de Natalia, o frágil adquire comovente potência e Donamingo converte-se em heroína.


De fato, diante de relatos cruelmente impressionantes, de histórias que beiram o irreal por conterem em si uma realidade impetuosa e aparentemente distante, o que mais chama atenção em Desterros, na verdade, é o domínio da linguagem impresso na construção de sua narrativa. Timerman possui um equilíbrio lúcido e invejável em relação à escrita que transmite ao leitor o impacto doloroso do que está sendo dito, sem, contudo, deixar de lado a dimensão poética que pode haver – e muitas vezes há – no real, poesia esta apresentada pelas lentes e palavras da autora, sensível tanto com os seus pacientes quanto com seus leitores. A literariedade de Desterros, não-ficção que opera como uma espécie de inventário de relatos assistidos por Natalia dentro do hospital penitenciário, enquanto psiquiatra, escritora e mulher, é o seu estabelecimento como narradora sensível e delicada para com a causa de cada um dos pacientes. A autora apropria-se das histórias que lhe foram confiadas e as difunde como quem salva, pela palavra, aqueles que não têm posse do discurso.


É importante ressaltar que a autora, embora sempre posicione-se feliz, corajosa e admiravelmente em relação aos aspectos do complexo prisional dos quais discorda, não toma lados ou vitimiza, em momento algum, quaisquer que sejam os protagonistas de seus registros. O que Natalia Timerman faz é desanuviar a própria visão e abrir os olhos dos legentes de Desterros em direção a um mundo forçadamente posto à parte do nosso, quando, na prática, ainda faz parte dele e é composto por pessoas que dele participavam, descrevendo com lucidez e empatia o cotidiano de um hospital-prisão.


Quem teve sua história contada aqui teve, ainda que por um momento, a coragem de me a revelar, e de revelar-se a si mesmo — e fazer-se a si mesmo — através dela. A prisão é um lugar para onde confluem muitas narrativas. Talvez este seja um dos motivos que respondam parcialmente à pergunta de por que gosto de trabalhar lá: porque gosto de escutar histórias. (p. 113)

O livro surgiu como um desdobramento da tese de mestrado da autora (disponível neste link) e, ao ser transformado na primorosa versão publicada pela editora Elefante, refinou-se, libertando-se do estatuto puramente fenomenológico objetivado pelas dissertações acadêmicas e afastando-se de análises comportamentais profundas que poderiam desinteressar leitores leigos, sem, contudo, tornar-se superficial. A plurivocidade reproduzida nas narrativas de Desterros, entremeadas não apenas pelas manifestações de presos anônimos, como também de importantes nomes da sociologia, da antropologia e da filosofia (como Ervin Goffman, Emmanuel Levinas e, com especial frequência, Hannah Arendt), valoriza a alteridade enquanto elemento humanizador, capaz de regenerar histórias que estiveram por muito tempo silenciadas em calabouços e que lá permaneceriam se não fosse o seu resgate atento. Como bem apontado por Bruno Zeni no posfácio roseano da obra, Natalia “empresta sua voz e a sua imaginação a outras vidas, sem perder a percepção da alteridade, do respeito pelo outro, em um feito literário profundo e inspirador” (p. 89).  Pelas palavras da autora, a literatura transforma-se em território dos desterrados, onde eles podem ter, durante um belo, necessário e iluminado instante, sua própria nação.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 


Assista também à entrevista com a autora no canal LiteraTamy:



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