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Quando o amor vai embora — uma leitura de “Copo Vazio” e uma carta inédita de Mirela



Mirela tem 32 anos e é uma arquiteta bem-sucedida quando cria uma conta em um aplicativo de relacionamentos, seguindo o conselho de começar a viver no agora, dado pela irmã. Assim ela conhece Pedro, com quem engata uma relação breve, interrompida pelo sumiço repentino do rapaz, que desaparece como um fantasma sem oferecer qualquer satisfação. Copo vazio (2021, Todavia), primeiro romance de Natalia Timerman, dedica-se à exploração dos sentimentos que recaem sobre a protagonista com a partida do homem amado, construindo uma espécie de linha do tempo que nos permite entender melhor as configurações de um relacionamento marcado pela contemporaneidade, mas destinado a fins familiares há séculos às mulheres dentro e fora da literatura: o abandono.


A autora, também psiquiatra, concebe sua protagonista com notável aprofundamento psicológico, uma personagem autossuficiente em quase tudo, mas ainda dependente quando o assunto é amor. O pai, divorciado da mãe, saiu de casa como que desenhando sobre Mirela a sina familiar do desamparo — dilatada em sina de gênero, na medida em que recai com muito mais frequência e impacto sobre as mulheres a condição de enjeitada em relacionamentos amorosos. Ela tenta fugir disso, mas toma caminhos distintos que dão no mesmo lugar. A narrativa acompanha com proximidade esse desassossego mas é escrita em terceira pessoa, de modo a manter-se minimamente distante do drama, evitando o ver perto demais que cegou Mirela, impossibilitando-a de enxergar os sinais, só considerados como tais à luz da posteridade, “porque não havia pensado ainda que o que acontece depois ilumina fatos anteriores de um jeito completamente diferente, o futuro dando realidade nova ao que já passou”.


Chamam atenção certas escolhas lexicais reiteradas no texto, abastecido por um arcabouço vocabular da fugacidade, do tênue, da liquidez fantasmagórica que atravessa as convivências na pós-modernidade. A narradora ordena o entorno de Mirela por meio desse vocabulário fátuo, indicando sutilmente as preferências (muito provavelmente inconscientes) da arquiteta pelo que é curto, pontual e passageiro. São exemplos disso a palavra “dose”, bem harmonizada com o título do romance, a noção de instante, preciso e intenso ponto de irradiação de dor, e o conceito de beleza, uma das mais fugazes existências, que tanto encanta a protagonista. Através das palavras, a narrativa aponta a atração da personagem pelo breve, pelo momentâneo e instantâneo, fazendo-nos pensar que talvez essa sua propensão ao temporário a tenha impelido em direção àquele com quem ela se relacionaria dessa maneira, tão desconcertante e rapidamente quanto um tiro dado num órgão vital.


Do primeiro ao último encontro, o vínculo entre Pedro e Mirela é marcado pelo desencaixe. Ela, emocionada e entregue, ele, fechado e distante. Apesar disso, ele nunca reclama do apressamento das coisas, em momento algum expressa desconforto em relação aos caminhos que o “namoro” toma; pelo contrário, ainda que com menos entusiasmo, Pedro responde com reciprocidade aos ditos apaixonados da protagonista e chega a escrever que sente saudade depois de ir embora, agindo de maneira desprezível ao alimentar esperanças vãs em uma mulher que claramente sofre com sua ausência. Por quê? Entendemos desses gestos mistos tanto quanto ela, ou seja, praticamente nada — e aí cabe a realidade dos fatos.


Ambientada em São Paulo, figura atuante no enredo, a história de Mirela é embalada pelas músicas escolhidas por ela para compor a playlist do relacionamento, depois transformadas em trilha sonora da dor e das “lembranças petrificadas derretendo antes de existir, saudade abortada”. Como não pode se ancorar em Pedro, ela se agarra ao que sobrou dele, à sua ausência e à busca como um modo de fazê-lo permanecer. Lidando com isso, a protagonista desenvolve uma interdição ao desejo, impedindo-se tanto de desejar quanto de ser desejada por outrem, cambaleando entre a proteção e a autopenalização pelo que não deu certo. Nesse processo ela reformula o tempo e enfim dá forma à sensação de abandono, que deixa de soar anacrônico uma vez que se instaura atualíssimo no presente pelo sentimento de quem é deixada para trás. Porque não há um término definido, um fechamento, é como se o relacionamento continuasse em aberto, ad aeternum — mas só para ela, a quem resta andar em círculos. Essa circularidade interminável, com o perdão do pleonasmo, faz dela uma personagem tão cansativa quanto qualquer pessoa ressentida, ponto positivo à verossimilhança da trama, e conduz o caráter simbólico do título do romance: o formato circular do copo, companheiro de muitos brindes entre o casal, vazio depois de transbordar, assim como Mirela.


O que se destaca em Copo vazio, além da caracterização honesta das angústias de um amor perdido sem motivo aparente e dos recortes de gênero e classe, muito bem-vindos e talentosamente aproveitados como alçada ao universal, é a sua competência em apresentar os dois lados da história. Mesmo autorizada a acompanhar apenas um deles, e valendo-se disso aos seus propósitos, a narrativa aponta tanto a facilidade com que mulheres criam expectativas sobre relacionamentos amorosos quanto a habilidade dos homens em se desvencilhar de qualquer responsabilidade afetiva que os acompanhem, elas e eles continuamente ensinados a agirem assim — além de demonstrar como, em qualquer época, amor e dor caminham próximos.



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Fique agora com uma das cartas do arquivo de correspondências não enviadas por Mirela a Pedro, gentilmente cedida ao LiteraTamy pela autora Natalia Timerman:


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PEDRO,

Já não dói. Já não me escapa o pensamento em direção a imaginar teu dia, tua hora, teus instantes. A paz: desenhar linhas me esquecendo tanto que me encontro em cada traço. Uma alegria, isso: quando ao mesmo tempo me esqueço e me encontro. Já não dói, e já me vejo habitada de mim. Mas ainda não compreendo. Entendi suas explicações, interpretei seus silêncios, escutei neles seu não e, com muito esforço, costurei um fim. Mas me faltava sempre a linha: ela era engolida pela memória boa, por teu olhar, pela lembrança do teu cheiro. Briguei de cabo de guerra comigo mesma, de um lado puxada pelos fatos, de outro por tudo o que sentia e lembrava. Os fatos ganharam. Foi uma pequena batalha de muitas lágrimas. Se eu tivesse raiva, não teria que me perguntar onde colocar tudo o que sem querer já havia sonhado. Não teria que me haver com a persistente vontade de te contar as coisas mais sem importância do meu dia, te mostrar a música tão linda que descobri, te dizer do livro que estou lendo. Não teria que pensar onde esconder de mim o sorriso sem forma toda vez que me lembro de te imaginar criança fazendo cadeadinho nas mãos das outras crianças sob os olhos da tua tia Walda. Desisti de tentar compreender o que aconteceu segundo o vocabulário que construí através dos meus sentimentos e histórias. O teu é muito diferente. Espero, porém, que nele existam palavras que preservem o que houve de bonito. Se existirem, é com essas que eu gostaria de dialogar. E te contar a proposta que eu tinha querido te fazer. Aquilo que houve terminou, eu sei. Teve tamanhos diferentes pra você e pra mim. Repercutiu dores anteriores, tuas e minhas. Eu sei. E foi só porque acabou que eu pude vislumbrar o que você talvez quisesse dizer quando escreveu que não daria tudo por terminado, livros devolvidos, boa sorte. Já não há mais nada a perder, por isso te escrevo agora. Não quero que nos percamos de vista. Isso é necessário?, eu nos pergunto. A proposta: que voltássemos a nos encontrar, com menos frequência, com mais cuidado. Eu preferiria fazê-la pessoalmente porque assim poderíamos perceber, diante do outro, se ela ainda faz sentido, depois de tudo o que passou. Se ainda sentimos carinho e desejo. Se ainda nos olhamos sabendo que algo acontece, como desde o primeiro instante em que nos vimos frente a frente. Apesar da mágoa, aqui e aí.

Eu poderia te perdoar, e te pedir perdão por ter invadido teu espaço, e te prometer que isso nunca mais aconteceria. Você poderia? Eu gostaria de te ver, porque tenho saudade. Não sei se tentou, mesmo sem querer, através do seu afastamento fazer o que sente terem te feito ao longo da vida; se teve medo; se simplesmente conseguiu que, dentro de você, tudo passasse. Se a última é a verdadeira, por favor me passe a receita.

Há tempo para pensar. Há tempo, porque já não é mais tempo. Seria possível outro?

A minha proposta poderia ser chamada: que no outro a gente pudesse se derreter de conversar, de prazer, e dormir. Uma vez por semana? Sei lá, numa frequência que nos preservasse a paz e a força. (saudade, aliás, de dormir com você, e de tudo o que vinha antes.)

Era isso o que eu gostaria de te propor.

Se tiver outra ideia de outro jeito como não desaparecermos das nossas vidas, me diga. A menos que seja isso o que você queira, o que respeitarei.

Um beijo grande e um abraço daqueles que a gente dava toda vez que se encontrava, como era? Com arrepio por dentro.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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