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AS BRUXAS DO LAGO LÉMAN sobre um palimpsesto lacustre


Serendipidade: a faculdade ou o ato de descobrir algo agradável por acaso; algo descoberto fortuitamente. É justamente sobre essas descobertas afortunadas feitas sem querer que edifica-se e desenvolve-se o romance As bruxas do lago Léman.


A narrativa lacustre de Flávio Dias gira em torno de dois lagos principais: Léman, na Suíça – região onde mais foram queimadas bruxas na Europa – e a Lagoa da Conceição, em Florianópolis – cidade conhecida como ilha das bruxas. Mas é à beira do rio Sarina, durante a journée de la sérendipité (ou “dia da serendipidade”) promovida pelo Café du Belvédère que os protagonistas do livro se encontram, aparentemente por acaso, como as águas em trânsito nos lagos, rios, mares e oceanos mundo afora. A roteirista Diane, sempre atenta aos bons acasos da vida, crente do poder da bruxaria e da poesia, está em vias de finalizar o seu primeiro documentário autoral. O tema do filme são as antigas mulheres tidas como bruxas, e por isso condenadas, torturadas e queimadas nos castelos à beira do lago Léman, na Suíça. Apesar de não conhecer muito sobre seu próprio passado, Diane sabe que é filha de pai brasileiro nascido em Santa Catarina, e isso basta como ponto de contato entre ela e Jackson, o narrador.


Fisioterapeuta por necessidade e escritor por vocação, Jackson é catarinense e apaixonado pela escrita. Seu papel como narrador é certamente o ponto alto do livro. Imaginativo e autêntico, o personagem assume a função de câmera que acompanha os passos de Diane quando esta volta à Florianópolis para desvendar alguns mistérios de seu passado e dar os toques finais necessários à conclusão de seu filme. Ela então se torna uma figura apaixonante e sedutora porque vista pelos olhos de Jackson. Com base no que a moça compartilha com ele sobre sua estadia em terreno brasileiro, o narrador-protagonista inventa e reproduz os devaneios de sua amada no Brasil e descreve com encanto os possíveis caminhos de Diane em terra paterna. Desse modo, Jackson torna-se um personagem que cria e desenvolve outra personagem sem que nos demos conta disso, tamanha a veracidade de sua desenvoltura como seres humanos.


Enquanto entusiastas das artes, inclusive da literatura, Diane e Jackson, sempre acompanhados de suas canetas BIC de quatro cores, constroem uma lista de palavras preferidas em todos os idiomas conhecidos por eles, e desse léxico particular surgem os capítulos de As bruxas do lago Léman. Em cada um dos vocábulos escolhidos pelo casal cabem inúmeras promessas, dentre as quais o narrador opta acuradamente pela que melhor se insere no contexto narrativo. A partir delas são tecidas comparações e alegorias vivas, palpáveis, de perfeito encaixe ao texto, além de duradouras, permanecendo depois da leitura – como a ideia de passado como um colar pesado que se carrega ao redor do pescoço, ou da memória como rascunho que não se passa a limpo. Pouco a pouco, o conjunto das explorações empreendidas por Jackson culmina em uma obra visual e envolvente, dentro da qual o vai-e-vem das digressões proporciona muita ação poética, além da participação da história, da política e de críticas sociais de posicionamentos claros em meio à ficção, esta quase irreconhecível na fusão inebriante do livro.


Acho que como a bruxaria, a poesia, a arte nunca tem de fato um fim. As obras têm mesmo seu modo de existência muito independente de quem as cria.

O encontro providencial com uma cigana faz com que o narrador passe a participar ativamente da narrativa, não apenas narrando o que aconteceu ou pode ter acontecido em sua ausência, mas com olhos atentos de quem esteve lá para ver e recontar – sem que isso elimine sua imaginação. Jackson explora as mais ricas possibilidades de narrar e do narrar, como quem está sedento e há muito privado de água, até que finalmente depara com uma nascente de líquido inesgotável. Diane rompe as barreiras que impedem o narrador de abraçar a sua fonte vital: a literatura.  Ela é uma bruxa, ele é um mago – ou uma testemunha da magia de Diane. Tocado por ela, ele recupera sua essência e se entrega a seu talento intrínseco.


A relação dos dois é banhada por um erotismo contagiante, aproximando-a do vínculo de Jackson com a escrita, para ele, uma tarefa física extremamente sensual. Diane é como uma musa não idealizada e imperfeita que estimula a veia artística do narrador. Ainda que ela anuncie desde o início que não o ame e ainda que ele respeite os sentimentos e decisões da documentarista, a nós é praticamente impossível deixar de ansiar por mais cenas entre eles, nas quais a fantasia e a realidade de Jackson se unem em um amálgama voluptuoso que inclui o leitor.


Escrever revelava-se tarefa física. Mais do que um romance poético ou um delírio fantástico, o ato da escrita assumia, para mim, a forma de um treinamento físico, cujo cansaço era extremamente sensual.

Em As bruxas do lago Léman é notável a permanência de certos elementos constitutivos do primeiro livro de Flávio Dias, o romance experimental A bengala de Chaplin. Para além da reaparição da estátua que intitulou o trabalho de estreia do autor, do cenário europeu como inspiração e da metaliteratura como um dos temas centrais (o romance As bruxas do lago Léman de Jackson-Flávio tem o mesmo nome do documentário escrito por Diane), certamente a recuperação mais sensível de um texto para o outro é justamente o narrador e seus ousados exercícios de escrita. Acaba sendo delicioso desvendar a nova obra do autor sul-brasileiro e surpreendentemente reconhecer temáticas e figuras recorrentes, sobretudo no que diz respeito a seu alter-ego Jackson. Essa retomada atrevida de pontos já tão marcantes em seu livro anterior revela a excelência de Dias como contador de histórias, além de sua competência estilística altamente reconhecível. A tentativa bem-sucedida de palimpsesto parece ser realizada com facilidade, como se não fosse complicado escrever sobre um mesmo suporte narrativas que, mantendo algo em comum, sejam tão singulares, com imagens próprias, fortes e permanentes.


Da leitura de As bruxas do lago Léman resta a vontade de continuar acompanhando a produção de Flávio Dias, a construção paciente de seu microcosmo narrativo, do universo particular revisitado com originalidade por seu narrador. A paixão por Diane, espécie de bruxa que – felizmente – escapou da fogueira é inevitável, assim como é infalível o carisma de Jackson. Dentre as serendipidades da minha vida de leitora, uma das mais agradáveis foi conhecer, adentrar e participar deste rico microuniverso literário.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.

 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo sobre o livro no canal LiteraTamy:




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