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O pampa gaúcho do século XX retorna em ANDARILHOS, romance de R. Tavares


No sul do Brasil, em meados do século XX, introduz-se a aparentemente despretensiosa narrativa de Andarilhos. Através dos passos de Pedro Guarany, um domador de cavalos que aprendeu seu ofício com o pai indígena e agora segue em busca de trabalhos temporários nas estâncias gaúchas, penetramos nos pampas sulistas, descobrimos traços de escravidão ainda persistentes em zonas brasileiras, acompanhamos o processo de degola de animais e amansamento dos equinos, e observamos, sobretudo, o exercício da sobrevivência que resulta da vida incerta dos itinerantes. Como companheiros de viagem seguimos Guarany, progressivamente desvendando algumas características já marcantes do território gaúcho e outras nem tão conhecidas assim.


Este homem do sul do Brasil é um homem das guerras, do trabalho e da tradição. Os cavalos são praticamente a extensão de seus corpos, por isso não é demais repetir que são verdadeiramente centauros americanos. Não julgo suas características sisudas, firmes — parece que o contato diário com o animais empresta a estes seres pampeanos alguns de seus traços. (p. 106)

De início, o retrato do homem gaúcho em Andarilhos é delineado por uma perspectiva naturalista-romântica um tanto quanto estereotipada, apresentando-o como indivíduo das guerras, do trabalho, da tradição, de influência equídea tanto em sua constituição física quanto em seus traços psicológicos sisudos e firmes. Pouco a pouco, porém, a descrição do sujeito do romance e os próprios temas da prosa extrapolam os limites da idealização e da área rio-grandense, abarcando uma vasta galeria de personagens enigmáticos e sedutores, cujos passados mostram-se ricos em acontecimentos envolventes, repletos de reviravoltas convidativas. Para dar conta de tal riqueza, Tavares opta por digressões certeiras e explora diferentes narradores e gêneros textuais, sempre mantendo a fluidez ininterrupta da narrativa.


— Monsieur Pedro, ainda não me contaste o porquê de viver ao Deus dará, somente viajando ao invés de conseguir um trabalho em uma dessas fazendas. Existe um motivo? —  Senhor Domingos, a verdade é que não existem razões certas para andejar. Mas, para sentar raízes em algum lugar, aí sim, seria preciso de uma. E essa razão não existe mais — respondeu, melancolicamente, Pedro. (p. 153)

Desse modo, o leitor gradativamente se familiariza com a sensação de fuga constante de Pedro Guarany, a quem o transcurso importa mais que o destino final; desconfia do misterioso tropeiro e peão João Fôia, cujo apelido advém de uma profunda e inexplicada cicatriz em seu rosto; diverte-se com o estrangeiro Alphonse Saint Dominguet, turista francês que espia e descreve de maneira analítica e desmistificada – mas, ainda assim, encantada – a sociedade gaúcha, partindo de um olhar que só poderia ser exterior aos pampas (assim como o fez Auguste de Saint-Hilaire, inspiração ao personagem fictício de Tavares); e surpreende-se com a aparição de personagens históricas, como o republicano Joaquim Francisco de Assis Brasil, nascido no Rio Grande do Sul em 1857, dono do Castelo de Pedras Altas, um dos locais explorados em Andarilhos.


A construção narrativa da novela alinhava as figuras e suas histórias umas às outras, conferindo ao livro certa emoção autêntica que o aproxima das boas séries televisivas com as quais o espectador cria laços por serem muito visuais, quase palpáveis, impossíveis de abandonar antes do final. Os personagens, tão particulares em seus conflitos pessoais, encerram em si alguma coisa de absoluto que conquista a empatia de quem lê, garantindo a identificação por parte de qualquer leitor. Em Andarilhos nada é gratuito: até mesmo as milongas desafetadas dos caminhantes atuam como recados de outras vidas, prenúncios consideráveis. Na obra de estreia de Tavares, cada elemento colabora de modo indispensável à sua unidade, demarcada pelos extremos da culpa e da redenção.


Reconhecer semelhanças entre R. Tavares e Érico Veríssimo é inevitável, e válido não apenas porque os dois autores são de origem gaúcha, mas também porque a literatura de cada um deles é “regional, em seu ambiente, mas universal em seus temas”, como dito por Maurício Wajciekowski no pequeno ensaio que encerra a edição do escritor estreante. O livro, publicado pela editora Taverna, surpreende na medida em que faz coabitarem harmonicamente o geral e o específico, saindo do Rio Grande do Sul para que até ele e por ele tenhamos vontade de caminhar, como andarilhos.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo sobre o livro no canal LiteraTamy:


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