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ÁGUA FRIA E AREIA: barquinho de papel pelos mares do desromance


Água fria e areia (2018, Lamparina Luminosa) é um desromance de início promissor, cujas promessas não só se cumprem como superam as possíveis expectativas. Começando in media res, a narrativa demonstra logo de cara ser autêntica e instigante, ainda que seu raio de alcance seja bastante específico: ele circunda a brasileira Caroline e o francês Yannis, reunidos pelos acasos que as viagens reservam e permanentemente associados pelos fios invisíveis que os sentimentos alinhavam entre os seres. Sobre esses sentimentos tão particulares e o modo de expressá-los tão próprio a cada um dos personagens, o narrador avisa: “a nós, de todo modo, não cabe questionar o léxico sentimental de cada um”.


E, de fato, isso não acontece. Enquanto leitores, estabelecemos com Caroline e Yannis uma relação de amizade sincera, em que não há espaço para julgarmos quaisquer que sejam suas atitudes, mas apenas para que dividamos com eles os seus passos, descobertas e itinerários e, quem sabe, para que apontemos aqui e ali um dos rios dentre os que surgem no percurso desses dois, cientes da liberdade que possuem para optar pelo que lhes pareça mais navegável. Os capítulos iniciais do curto livro soam como microhistórias independentes, costuradas umas às outras, em consonância com o que o universo costuma fazer em nossas vidas, aparentemente autônomas, embora invariavelmente ligadas por linhas incorpóreas.


Habilidosa ao descrever em palavras sensações exatas e sentimentos incontornáveis, Vanessa Vascouto transforma em escrita objetiva as pequenas subjetividades de seus personagens. Seu modo de narrar equilibra delicadeza e precisão, fazendo com que conteúdo e forma confluam, como rios que correm juntos, desaguando no chamado desromance. A ideia de oposição ao romance tradicional apresenta-se não apenas no enredo, nesse “romance que era quase um desromance: uma história que não sabe ficar”, mas também na forma não linear com que a história é contada, fragmentada e focada em pequenos episódios, significantes ao todo, à existência total de Caroline e Yannis. O resultado é uma narrativa que se parece em muito com a nossa própria trajetória, nada heroica, bastante trivial, e, no entanto, ainda assim digna de ser narrada pela sua singularidade.


Vamos passar a vida aquém das nossas expectativas. Isso ninguém nos diz quando somos jovens. Que em algum momento vamos nos quebrar de uma forma que jamais será superada, que um dia talvez, sem querer, quebraremos a quem amamos, e que isso vai nos mudar para sempre. Que vai acontecer com todo mundo e que o tempo vai continuar passando, tenhamos aprendido a lidar com o que aconteceu ou não, tenhamos coragem ou não. A hora das coisas está além de nós. (2018, p. 74)

E é por essas águas graciosas que o leitor navega, como quem viaja em segurança dentro de barquinhos de origami. Por mais que o rio desconhecido da narrativa de Água fria e areia esconda sob sua superfície uma profundidade enigmática, também o origami é feito de camadas e camadas de papel especial; fino, sim, mas inteligente e precisamente moldado para ser capaz de navegar e enfrentar o percurso. Assim é o desromance de Vanessa Vascouto: a água fria e a areia, o barquinho e o mar, elementos complementares em união para oferecer ao leitor uma deliciosa viagem pelos mares do outro.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 


Assista também à entrevista com a autora no canal LiteraTamy:



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