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VERÃO NO AQUÁRIO: como nadar em uma redoma de água fervente?

  • Foto do escritor: Tamy Ghannam
    Tamy Ghannam
  • 5 de mar. de 2021
  • 4 min de leitura

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Narrado em primeira pessoa, Verão no aquário traz como protagonista a jovem Raíza, cujo nome sugere o enraizamento profundo que a confina, atada ao passado através das lembranças vivazes de seu convívio familiar. Gestando o caráter da personagem, consta como uma característica inerente de sua personalidade a relação conflituosa que ela mantém com a mãe, Patrícia, uma escritora reclusa e irreprovável diante da qual Raíza busca de todos os modos contracolocar-se. O título do livro é uma espécie de figura que condensa em si toda a base sobre a qual a obra se sustenta, especialmente por se tratar ele mesmo de uma alegoria, aberta a variadas interpretações producentes.


Esse segundo romance de Lygia Fagundes Telles é eminentemente alicerçado por imagens que o compõem, e sua intitulação é um comprovante ideal da primorosa construção imagética operada pela autora paulista: o verão a que se refere pode dizer respeito à estação do ano durante a qual a história se passa, à erupção explosiva e indomável de Raíza rumo à fase adulta ou à sensação de abafamento sufocante que impera sobre todos; o aquário, por sua vez, alude explicitamente à residência dos peixinhos dourados que enfeitam o lar da família protagonista, mas também adequa-se como referência ao ambiente restrito em que movimentam-se os personagens, condenados a sobreviver dentro do ciclo oferecido pela pequena porção de espaço disponível, ao fatal reencontro com o próximo e consigo, refletidos na redoma de vidro.


— Vou pedir à titia que vista uma roupa de fada e me transforme num peixe. Deve ser boa a vida de peixe de aquário — murmurei. — Deve ser fácil. Aí ficam eles dia e noite, sem se preocupar com nada, há sempre alguém para lhes dar de comer, trocar a água… Uma vida fácil, sem dúvida. Mas não boa. Não se esqueça de que eles vivem dentro de um palmo de água quando há um mar lá adiante. — No mar seriam devorados por um peixe maior, mãezinha. — Mas pelo menos lutariam. E nesse aquário não há luta, filha. Nesse aquário não há vida. A alusão não podia ser mais evidente. Estou me despedindo do meu aquário, mamãe, estou me preparando para o mar, não percebe? Mas nem você percebe isso? (p. 137)

A construção dos diferentes personagens e cenários funda-se, de fato, sobre as prolixas e potentes imagens, tais quais o crepúsculo formado por luz e sombra, a flor que pende como um pescoço guilhotinado, o matrimônio como uma bolsa de água quente que esfria com o passar do tempo, a fonte que invariavelmente seca, a contraposição entre o espelho e a janela como contraste entre a autoanálise e a observação do outro, a metamorfose da lagarta que, na sede de ser bela, transforma-se em borboleta, uma escada que só se pode descer e, naturalmente, o aquário. Em torno deste, pairam questões fundamentais ao desenvolvimento da trama: quem está dentro de suas águas, que sombras transitam a seu redor, qual é o movimento destes dois grupos em relação a ele?


As respostas também são dadas por imagens, fornecidas pela perspectiva de Raíza, narradora que estrutura uma realidade onírica e contrastiva. Cerceados pelos vultos ameaçadores de um período político tenso que se aproxima, os peixinhos pequeno-burgueses com quem a protagonista convive são coagidos a permanecer no aquário, sob o risco de não sobreviverem fora d’água. É o caso de Patrícia, a mãe-esfinge que reflete e é refletida pela filha, com quem conserva íntimas ligações, ainda que ambas sejam rivais tipicamente edipianas; do pai, sempre estrangeiro e regularmente alcoolizado; da prima Marfa, amarfanhada pela própria rebeldia; de André, o anjo caído, galã santo e problemático, em constante flerte com a morte; de Dionísia, a empregada doméstica responsável pela manutenção do aquário e pela alimentação dos peixes. Todos os outros seres com quem Raíza nada em seus mergulhos são também descritos de modo que atesta uma atração inevitável da protagonista pelas imagens e por tudo aquilo que seja intermediário, pela perniciosa indecisão de quem deseja ser boa enquanto resiste a todo ato de bondade, de quem nega a família sem contudo desatar os laços que lhes unem.


E eis que com dezesseis anos e oito meses apenas, pressenti que viriam outros equívocos: a busca, a conquista, a posse rápida e total na ânsia de enraizar o amor que de repente não é mais amor,  é luxúria, luxúria que de repente não é mais luxúria, é farsa. Farsa que é medo, simplesmente medo da solidão mais difícil de suportar do que o peso do corpo a se abater sobre o meu. (p. 52)

O medo da solidão que assola Raíza alimenta seu apego pelo meio-termo, bem como sua incapacidade de lidar com o que for pleno, absoluto. A protagonista conserva-se apenas no terreno do medíocre, fazendo morada no não-lugar que dispensa posicionamentos radicais, poupando-a de assumir qualquer parecer que requeira uma decisão definitiva. Por essa razão, a moça vive em constante estado de representação, fugindo dos mergulhos profundos e também da superfície, como quem entra no mar apenas até o nível em que é possível manter os pés em contato com o chão de areia.


Nesse sentido, o aquário configura um confortável simulacro que Raíza se nega a abandonar, mesmo ciente da existência do oceano e suas múltiplas possibilidades. Na redoma aquática de seu círculo social, a protagonista sente-se à vontade, adaptada aos hábitos de seus predadores e cuidadores. A atmosfera de calor opressivo causado pelo verão insistente sobre o aquário já lhe é conhecida – e até desejada por ela. Conforme o final do romance se aproxima, bem como o fim da estação mais quente do ano, parece haver também um relaxamento das tensões dos personagens. No entanto, como é próprio de Lygia Fagundes Telles, caberá não à narrativa, mas ao leitor decidir se o frescor que alivia os ânimos acalorados da trama será suficiente para transformar a expectativa de felicidade em consumação; neste caso, quem lê só pode deduzir se a filha de Patrícia finalmente tomará coragem para nadar com suas próprias barbatanas em mar aberto, ou se permanecerá na mediana efervescência de seu aquário.


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Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


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