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A vida como inventário de perdas nO PESO DO PÁSSARO MORTO



O peso do pássaro morto (Nós e Edith, 2017) conta a despretensiosa história de uma mulher sem nome, com especial atenção a determinadas idades da protagonista (dos 8 aos 52 anos), que indicam os capítulos do livro. A obra de estreia da autora paulista Aline Bei surpreende em um primeiro momento pela forma: trata-se de um romance escrito em versos. Esse estilo promissor tornou-se marca registrada da jovem escritora – que o imprime igualmente em suas narrativas curtas, publicadas semanalmente nas redes sociais – e surge como uma potência inovadora na literatura nacional contemporânea. Para além da configuração formal do texto, a poesia se faz presente também nas belíssimas imagens e figuras de linguagem trazidas pela autora para dentro de O peso do pássaro morto, carregando-o de eficiência sensorial. E é assim, erguendo marcos no terreno literário brasileiro, que Aline Bei constrói seu primeiro livro.


A narrativa, escrita primordialmente em primeira pessoa, ao retratar a infância da personagem principal traz a prosa ingênua de quem está em contínuo estado de descobrimento. Esse encantamento em relação às descobertas da vida, no entanto, ultrapassa a fase infante e se apresenta como uma constante que acompanha a mulher anônima durante toda a sua existência, mesmo que esta seja duramente marcada por aniquilamentos. A protagonista, ainda que inominada, possui um discurso muito próprio, que amadurece com o passar dos anos. O tom de sua fala se altera nesse processo, mas sua voz permanece a mesma, inconfundível. Há qualquer coisa de inocente que se conserva do início ao fim do relato, e é esta coisa que resiste à profunda melancolia do viver que a mulher precisa enfrentar.


Diante da tristeza, da solidão e das perdas que lhe são tão particulares, compondo um catálogo bastante pessoal da personagem, manifesta-se algo de coletivo. Embora a protagonista possua suas dores agudamente específicas, tendo de lidar com problemas relacionados à condição de ser mulher (como a violência sexual, a maternidade e a reflexão acerca do aborto) e de ser quem é enquanto indivíduo singular, ao mesmo tempo sua trajetória poderia ser a de qualquer um de nós. A vida – ou o pequeno inventário de tragédias e perdas – dessa personagem tão forte em sua singeleza é tanto distinta quanto universal e a narrativa principiante de Aline Bei surpreende, equilibrando essas características de modo a envolver fatalmente os leitores em passeios pelo terreno das ausências, parte de qualquer vivência humana.


mas não era Tempo o problema foi a perda da parte de mim que acreditava, vazou no banho um dia pelo ralo, escorreu e a água rápida mandou pro cano que levou pro rio. (2017, p. 33)

A bela metáfora do peso do pássaro morto, que intitula a obra, suscita ricas interpretações. Quando criança, Aline Bei segurou o passarinho da família, enquanto sua mãe rapidamente buscava o cortador de unhas para lhe aparar as pequenas garras. Nesse meio tempo, o pássaro acabou morrendo, seu corpo pesando de modo tão consistente nas palmas das mãos de Aline que elas jamais foram as mesmas (segundo palavras da própria autora, reforçadas pela epígrafe do romance). Dentro do livro, o pássaro morto remete de modo direto ao tenso e transformador episódio em que o filho da protagonista, ainda bem jovem, se reúne com amigos para jogar pedras nos pássaros que voam pela vizinhança, enchendo a mãe de uma tristeza pesada, de consequências irremediáveis à família. Mas assim como o texto da obra é repleto de encantadoras e comoventes alegorias, dessa forma também pode ser lido o seu título: o pássaro morto referindo-se à própria protagonista, ave impedida de voar e manifestar suas aptidões naturais por conta da sobrecarga que lhe é imposta a contragosto pela vida. O peso do pássaro morto é, acima de tudo, a sensação que fica daquilo que não ficou.


O teor meio mágico do fechamento da narrativa, um pouco destoante do restante do romance, faz explodir a magia contida na personagem, que até então escapava por pequenas frestas poéticas, oferecendo-lhe certa redenção depois de tanto sofrimento reprimido. A edição do romance, publicada em coedição da editora Nós com o selo Edith, abrilhanta a experiência de leitura, dialogando significativamente com as possantes sutilezas da narrativa. Terminada a leitura, o livro pesa como pássaro vivo em nós, capaz de nos fazer voar por dentro.



 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também à entrevista com a autora no canal do LiteraTamy:

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