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"No jardim do ogro", de Leïla Slimani, e o existir pelo desejo do outro



“Faz uma semana que ela aguenta. Uma semana que ela não cedeu. Adèle comportou-se” — assim começa No jardim do ogro, de Leïla Slimani (Tusquets, trad. Gisela Bergonzoni), pelos indícios da personalidade ansiosa e autoflagelante da protagonista. Alusiva, já na primeira página a prosa faz menção a um sonho que denuncia a energia acumulada pela privação de desejos então misteriosos da personagem. Até que essas vontades se admitem, numa frase aberta a interpretações e que carrega muito do aspecto fabular característico da literatura da autora franco-marroquina: o que Adèle quer é “ser uma boneca no jardim de um ogro”.


Não demora muito para que a barragem se rompa e o incontrolável tome conta dos andamentos da narrativa, dos passos pela Paris suja e decadente que serve de cenário, transmitindo a aura dos conflitos que perturbam a protagonista. Conter seus impulsos não faria a vida mais bela, pelo contrário, faria dela uma experiência insuportável. De início pouco se sabe de que impulsos são esses, mas logo eles se revelam de natureza sexual, o erotismo de Slimani ultrapassando a tradicional representação de fuga da realidade para se apresentar como algo muito mais pujante: a única possibilidade de manifestação de vida de sua personagem.


O percurso é intenso. Adèle é uma mulher de classe média, casada, mãe de um menino, inserida numa relação monogâmica tradicionalíssima (em que impera não o amor, mas quase uma necessidade de estar junto, sobretudo por razões práticas) e viciada em sexo, em relacionar-se com vários homens, novos homens, em diferentes contextos, de maneira quase clínica. A profissão de jornalista é um álibi que concede a liberdade necessária para a realização dos encontros extraconjugais – e que Slimani tenta aproveitar como entrada à intervenção de elementos sociopolíticos um tanto vagos, como os conflitos da Tunísia, que a narrativa não elabora muito e que destoam do caráter intimista que a qualifica. O romance gira em torno da compulsão por sexo que consome a vida de Adèle, determina suas escolhas, define seu comportamento. Ela nunca teve outra ambição além de ser olhada e adoraria ser paga pelo talento de distrair os homens. É quase como se precisasse ser usada por um outro, sentir-se manipulada — e, em alguma medida, violentada —, uma boneca no jardim de um ogro que pudesse fazer dela o que quisesse. No potencial, especialmente, mora sua excitação. Esse é um desejo insaciável porque deixa de ser desejo assim que consumado, gerando novamente a falta que deve ser preenchida, ainda que por homens medíocres, nada especiais, que tenham interesse em manuseá-la, com seu consentimento, feito coisa frágil.


O matrimônio e a maternidade são parte da farsa que ela representa como quem atua num drama teatral. Adèle é uma impostora prestes a ser desmascarada, paralisada pela ideia de perder tudo. No casamento não há o ardor do desejo por nenhuma das partes; o sexo é mecânico, superficial e insatisfatório, provocando solidões ainda mais contundentes. Em determinado momento Adèle chega até a acreditar que ter um filho de alguma forma a “curaria”, a libertaria do ciclo nocivo em que está inserida, mas descobre que também esse amor materno é insuficiente para saciar vontades tão primitivas, selvagens e absolutas como as suas. Fora do alcance dos holofotes que iluminam os palcos da vida comum, ela se despe das fantasias e corre atrás de si, a quem encontra apenas quando tomada pelo outro.


Somado à Canção de ninar, romance seguinte da autora, No jardim do ogro traz o bastante para reconhecer que as mulheres de Slimani desviam da norma, protagonistas que precisam esconder a essência do que são. O mais interessante é que sua literatura verdadeiramente se dedica a investigar o que as leva a serem assim, a complexidade de seus desajustes, deslocamentos que as tramas descrevem sem imprimir juízo de valor, e acabam por mostrar que grande parte dos distúrbios tem fortes origens estruturais, reconhecíveis nas raízes que sustentam a sociedade, tal qual o imperativo patriarcal que define os homens como os principais — ou mesmo únicos — pontos de referência na vida das mulheres, supostamente destinadas a existir pelo desejo do outro. A narrativa em terceira pessoa do romance, que mantém certo grau de distanciamento em relação a Adèle, é perspicaz em captar o cerne de suas tensões, mesmo nas raras aberturas da protagonista.


Muito da infância de Adèle escorre pelas feridas que a incomodam durante o romance. A mãe, que parece tomá-la como rival, talvez seja a mais notória, uma criatura nebulosa e um tanto detestável, responsável pelo contato precoce e tortuoso da filha com a sexualidade, levando-a consigo em passeios misteriosos por quartos de hotéis e vielas parisienses obscuras. Talvez por uma falha de caráter facilmente impressionável, ou por possuir nas veias o sangue que desperta o desejo, Adèle ainda criança pôde sentir “esse sentimento mágico de tocar com os dedos o vil e o obsceno, a perversão burguesa e a miséria humana”.


Outra mulher importante na trajetória da protagonista é a confidente Lauren, a quem Adèle também não se furta de trair, e com quem mantém uma amizade da qual ressoam ecos de uma infância perdida e da influência materna em sua formação. No relacionamento das duas reflete-se a forma pragmática com que a protagonista encara certas coisas da vida, como o casamento:


— Por que você se casou com Richard? — pergunta-lhe Lauren, como se adivinhasse seus pensamentos. — Você estava apaixonada por ele, acreditava nisso? Não consigo entender como uma mulher como você pôde se colocar nessa situação. Você poderia ter mantido sua liberdade, viver sua vida como bem quisesse, sem todas essas mentiras. Isso me parece... aberrante. Adèle olha para Lauren com espanto. É incapaz de compreender o que sua amiga lhe diz. — Eu me casei com ele porque ele pediu. Foi o primeiro e o último até hoje. Tinha coisas a me oferecer. E, depois, minha mãe ficou tão contente. Um médico, você percebe? — Você está falando sério? — Não vejo por que eu deveria ficar sozinha. — Ser independente não é estar sozinha. — Como você, é isso? (p. 40)

A questão da dependência financeira e emocional de Adèle para com o marido é crucial; sem ele, ela seria obrigada a enfrentar a vida concreta da qual busca incessantemente escapar. Por grande parte da trama Richard é uma figura sensata, um médico responsável e completamente alheio aos ímpetos sexuais da esposa, alguém com quem ela parece poder contar sempre, ao menos dentro dos limites de sua performance. Um acidente de moto, no entanto, altera toda a dinâmica de suas vidas e promove uma espécie de troca de papeis entre eles, Richard tornando-se dependente da mulher e cada vez mais presente no ambiente doméstico até então dominado por ela, que escondia com esforço qualquer rastro de sua infidelidade. A partir desse ponto, a narrativa passa a explorar a figura do marido, personagem que ganha dimensões conforme o enredo avança, revelando-se a partir da descoberta da esposa. Richard, que nunca dera importância ao sexo — e que, personificando o senso comum, acreditava que uma mulher inteligente e refinada como Adèle ficaria aliviada com seu desejo morno, não poderia realmente gostar de sexo e de todo o “teatro da paixão” —, quer salvá-la de males causados por ele mesmo e seus impulsos controladores, e acaba por colocá-la numa situação em muito correspondente ao labirinto do monstro que ela, em algum momento, esperava conhecer.


Com descrições tensas e certeiras, No jardim do ogro compõe uma trilha psicológica eletrizante, acompanhando uma protagonista de comportamento destrutivo e arriscado, que pondera e tem consciência dos perigos de seus hábitos, mas não consegue escapar deles. Para Adèle, curar-se seria perder qualquer coisa de essencial, de que ela não está disposta a abrir mão, e, portanto, “suas obsessões a devoram. Ela não pode fazer nada. Porque requer mentiras, sua vida demanda uma organização extenuante, que ocupa totalmente seu espírito. Que a rói”. Slimani constrói uma personagem para quem o erotismo, mais do que um fundamento, é a totalidade, superando a própria vida. No coito ela enfim é vista, contemplada. Ela existe pelo sexo, mas também por conta dele se vê impedida de cultivar princípios básicos da existência humana, como a amizade e o amor, impossibilitada de viver plenamente, à medida que sua existência depende sempre do olhar masculino sobre si e suas fragilidades. Adèle faz desse comportamento prejudicial a sua verdade, implantando-se num vaivém interminável e inescapável que agita seus sentidos. O sexo é sua glória e sua perdição.


Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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