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O filho pródigo senta-se à mesa em LAVOURA ARCAICA, de Raduan Nassar




A parábola do filho pródigo compõe o imaginário ocidental como um dos mais conhecidos textos bíblicos. Nela, o filho caçula, arrependido por ter deixado o lar e extravagado seus recursos, retorna ao seio familiar para redimir-se de seus atos. A moral de redenção intencionada pela alegoria cristã foi – e nada impede que continue sendo – explorada continuamente em produções artísticas de diversos segmentos, incluindo o literário. Ela servirá como ponto de partida também para Lavoura arcaica. No entanto, o que Raduan Nassar manifestamente propõe em seu primeiro livro é invertê-la, mantendo-se distante do ideal de remição passiva e sincera da metáfora original.


André, o protagonista do livro, seria o filho pródigo que abandona a casa. Membro de uma família tradicional e, por consequência, extremamente patriarcal, ele busca libertar-se das amarras paternas e de seus princípios sufocadores que limitam e impõem aos descendentes uma obediência servil cega, corroborada pelo uso de provérbios e pela repetição de hábitos que fortalecem a imagem do pai como totem. A primeira parte da obra, denominada A partida, narra a estadia do personagem em uma pensão distante até o momento em que seu irmão, Pedro, vai ao seu encontro, enquanto a segunda parte, O retorno, mostra o regresso dos dois a casa de origem. A estrutura formal do relato de André acompanhará o caráter cíclico da narrativa. O protagonista não só vai e volta no espaço, como seu relato realiza o mesmo movimento no tempo. Almeida-Abi, no artigo A imagem do pai em Lavoura arcaica¹ (2009) para o n.2 da revista Criação e Crítica diz que “há um movimento de retorno que percorre a narrativa tanto no sentido espacial (casa – pensão; pensão – casa) como no sentido temporal. André acorda recordações misturadas no tempo e no espaço, desordenadas do ponto de vista sequencial, como se os relatos fossem concatenados por um processo de livre associação. Esse processo começa com a visita de Pedro, o irmão mais velho, que tem como missão devolver o filho pródigo a casa da família”.


Embora o ato de retornar seja fundamental na história original do filho pródigo, em Lavoura arcaica ele já representa um elemento de subversão da parábola pela forma com que é abordado. O rompimento com os moldes da história bíblica faz-se presente desde o início pela linguagem criada por Nassar para o relato de André. Narrado em primeira pessoa, o livro adota um idioma próprio, muito além da linguagem poética já conhecida, contendo em si a rebeldia do filho fugitivo. Mais do que pelos gigantescos períodos e pela inusitada pontuação, a expressão adotada por André destoa da simplicidade sempre estimada por seus familiares através do ajeitado desordenamento que nela imprime traços de requinte formal.


amar e ser amado era tudo o que eu queria, mas fui jogado à margem sem consulta, fui amputado, já faço parte da escória, vou me entregar de corpo e alma à doce vertigem de quem se considera, na primeira força da idade, um homem simplesmente acabado, bastante ativo contudo para furar fundo com o indicador a carne podre da carcaça, e, entre o polegar e o anular, com elegância, fechar trópicos e outras linhas, atirando num ossário o esqueleto deste mundo; pertenço como nunca desde agora a essa insólita confraria dos enjeitados, dos proibidos, dos recusados pelo afeto, dos sem-sossego, dos intranquilos, dos inquietos, dos que se contorcem, dos aleijões com cara de assassino que descendem de Caim (quem não ouve a ancestralidade cavernosa dos meus gemidos?)

 

Esse desconcerto do pensamento do protagonista vai contra os fundamentos de organização e regularidade que regem sua família. Além disso, enquanto o pai preza pela reprodução de provérbios simbólicos milenares e edificantes, espécie de mandamentos a serem cumpridos por todos, o filho assume uma linguagem original, particular, que expressa não as generalizações dos ditos paternos moralizadores, mas suas perturbações e desejos individuais. O retorno de André não se faz pela eficiência dos provérbios clamados pelo pai, e sim pelo auto despertar de sua consciência que, em dialeto peculiar, demonstra que o que ele busca é seu lugar na mesa da família, ainda que para isso seja necessário corromper a imaculada ordem hierárquica estabelecida pelos princípios familiares.


André procura superar os limites impostos pela pressão paterna através do desabafo nessa linguagem própria. A tentativa de alcançar um verbo original independente do verbo ancestral foi muito bem pontuada por Almeida-Abi: “A superação, se há, é pela linguagem – pela confissão, pela catarse –, pela criação artística. Há um trabalho intenso com a linguagem como para se depurar um verbo original, descarnado do verbo paterno dentro de uma língua já autorizada/possuída pelo filho”.


Além da linguagem, outros elementos representam a índole subversiva de André. Dentre todos, certamente o que aparece de maneira ainda mais visível e chocante é o incesto. O protagonista enxerga no sexo uma oportunidade de libertação, mas, incapaz de livrar-se da prisão familiar que o constitui e simultaneamente o delimita, só consegue expressar genuinamente sua sexualidade quando seu objeto de desejo é algum membro da família. A atração incestuosa é o motor de André, sendo consequência e causa da insubordinação que inspira a partida e o retorno. A subjetividade incerta do fluxo de pensamentos do protagonista nos impede de afirmar com certeza se tal interesse é provocado ou involuntário, mas é certo que André visualiza nele a maior possibilidade de afronta à autoridade paterna. O incesto é tão relevante para o livro que resultará em um dos mais fortes e simbólicos finais da literatura brasileira, o qual representa a afirmação do poder e a marca do sacrifício pelo bem maior, qual seja a manutenção do bem-estar e da ordem familiar.


Como já dito, o que André pretende é encontrar seu lugar dentro da casa paterna, mais especificamente “na mesa da família”. Durante o romance, Nassar reforça a ideia da mesa familiar como um dos mais significativos objetos do lar, por reunir pais e filhos ao seu redor e por representar na disposição dos assentos a potente estrutura familiar a ser respeitada não só no decorrer das refeições, mas em cada ação do núcleo doméstico. A cabeceira, lugar de destaque, pertence ao chefe, Iohaná, que sentado ali declama seus provérbios e intimida a prole com a sabedoria vernácula adquirida por seus ancestrais. Almeida-Abi afirma sobre André, com razão, que “ele quer o lugar do pai”. O lugar à mesa buscado por ele é a cabeceira; o espaço almejado por ele dentro da família é o lugar de chefe, já ocupado por Iohaná.


Repleto de referências bíblicas e religiosas que enriquecem sua interpretação, Lavoura arcaica trabalha com o profano e o sagrado como opostos e complementares. Cabe mencionar aqui a excelente adaptação cinematográfica da obra, dirigida por Luiz Fernando Carvalho em 2001, que inspira-se nos princípios barrocos de proporção e da contraposição escuridão/luz para reproduzir no filme os contrastes tão importantes no livro. Em certa medida, o romance de Nassar é uma confissão sincera – e não necessariamente arrependida – e blasfemadora de André, a ovelha sacrílega que se revolta contra a onipotência de um deus do qual não pode escapar.



¹ O texto pode ser acessado aqui: <http://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/46761>


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 


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