Na epígrafe de Invenção e memória, Lygia Fagundes Telles nos dá a chave para adentrar o universo dos textos que virão em seguida; nela, Paulo Emílio Sales Gomes diz: “Invento, mas invento com a secreta esperança de estar inventando certo”. Como que sabendo-se invenção, a memória recontada, inevitavelmente mesclada à imaginação daquela que a reconta, é a síntese da ficção lygiana neste livro.
Digo “neste livro” porque os leitores afeitos à literatura de Telles encontrarão aqui uma nova postura da autora, que depois de tantos anos produzindo ainda foi capaz de se reinventar mesmo nos últimos livros, com uma espécie de rejuvenescimento narrativo somente possível depois da segurança garantida pela vasta produção prévia que se afirma inabalável. Algo parecido já havia sido feito em A disciplina do amor, mas não com tamanha liberdade. Aqui Lygia escolhe brincar — com sua obra e também com os leitores. Diferente da atmosfera aterradora que alçava as narrativas anteriores, enlaçando seus personagens desajustados em certo sufoco tão apavorante quanto sedutor desde o (quase) primogênito Ciranda de Pedra, Invenção e Memória é refrescante em seus textos que parecem narrados diretamente pela voz da autora. Por isso é excelente para ser lido dentro da organização cronológica dos escritos lygianos — depois de tanto tempo acompanhando as falas de personagens criados pela autora como outros, ler suas invenções com o tom de sua própria voz, mesmo que através de uma personagem Lygia Fagundes Telles, é como um presente, um voto de confiança que ela nos dá.
Os textos tocam em pontos que já haviam permeado muitas de suas páginas, como o suicídio, o aborto, a velhice, a morte vinculada à infância, situações diante das quais temos nossas reações antecipadamente definidas, mas que dentro de uma narrativa lygiana nos escancaram a inconsistência de nossos pontos de vista. Somos sempre tão éticos, certo? Pois em Lygia a ética vai às cucuias, nela prevalece o humano, demasiado humano, repleto de incoerências que um conjunto de leis e normas não é capaz de abarcar e que seus textos manifestam em nós leitores. Apesar da presença de temáticas familiares ao universo lygiano, a abordagem mais íntima deste livro o coloca no patamar de inovação no conjunto que compõe tal universo — por isso, eu não recomendaria essa leitura como porta de entrada à literatura lygiana. Quem começa por este livro e nele fica, nada conhece de Lygia, porque para conhecê-la de fato é necessário mergulhar também em seus romances e contos, mas aquele que o lê depois de percorrer a ficção que o antecede tem o privilégio de acessar uma nova face do calidoscópio que é Lygia Fagundes Telles, uma peça nova desse quebra-cabeças literário.
Que não há memória pura, disso todos sabemos. Não é novidade, e nem o era há vinte anos, que o exercício da recordação é sempre também um exercício de invenção. O que diferencia a produção de cada autor que trabalha com essa matéria é o que se faz com essa informação. No caso de Lygia, ela faz enxergar nas pessoas reais que povoam seus textos traços e manias que em sua obra ficcional são elementos narrativos — o jeito de se portar, as cores escolhidas para vestir, o movimento do corpo, os cacoetes e repetições de palavras —, abraçando o caráter inventivo das lembranças e o evidenciando junto ao caráter memorialístico inevitável da ficção, desde o título que dá à coletânea. Ela não quer enganar ninguém que não saiba que está sendo enganado. Da memória inventada Lygia faz literatura — e mais uma vez promove o pacto que sustenta sua produção, o pacto que nos inclui em suas palavras.
Desse empreendimento surgem textos preciosos, como o “Rua Sabará, 400”, em que Lygia leitora de Machado de Assis nos apresenta uma pequena fatia dos bastidores do roteiro para cinema, que escreveu com Paulo Emílio Sales Gomes, baseado no romance Dom Casmurro, também ele uma prova (certamente das maiores oferecidas pela literatura) de que rememorar e inventar podem ser a mesma coisa, vide a desconfiança que paira sobre o perturbado Bento Santiago lembrando-se Bentinho apaixonado por Capitu. O texto “Heffman” é outro bom exemplar de Lygia leitora, dessa vez compondo um belo jogo de referências com Proust, além de um delicioso passeio pela paulistana livraria Jaraguá, “a famosa livraria e sala de chá que Alfredo Mesquita abriu na Rua Marconi” (2009, p. 47).
Contagem em dólar! sopra o materialista eufórico. Pois é, a ênfase. "As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase", escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade. Ficam tristes as coisas e a espécie humana, eu acrescento. Com a licença dos ateus eu queria dizer ainda que na ênfase está a alma. Tive a minha juventude tão impregnada pelo som colonizador que considero um milagre me ver insubmissa nesta altura, tentando desde sempre — ai de mim! — forjar uma vontade com a resistência do ferro. (2009, p. 61)
No posfácio que acompanha a edição mais recente da Companhia das Letras, de 2009, Ana Maria Machado vê Invenção e memória como um depósito de ideias lygianas que a própria Lygia nos abre para explorar junto conosco, como se também buscasse entender, por meio da escrita, como sua escrita se faz. Coroado por um depoimento de José Saramago sobre sua amizade com Lygia, o livro é realmente um estoque encantado enfim destrancado, uma espécie de almoxarifado de memórias e invenções ao qual a autora recorre sempre que decide contar uma história.
Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
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