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FADAS E COPOS NO CANTO DA CASA: sobre sororidade, solidão e miséria



Bianca é uma moça de vinte anos que narra, numa espécie de diário, o cotidiano do bordel em que vive na condição de prostituta. A primeira página de Fadas e copos no canto da casa (Quintal Edições, 2017) escancara o peso das raízes que prendem a protagonista ao solo tóxico das memórias familiares, responsáveis por guiá-la à solitária cidade interiorana em que o romance de Mariana Carrara acontece. Despreocupada, a narradora em primeira pessoa não pretende fornecer logo de cara muitas informações sobre o contexto do qual parte: seus escritos são, acima de tudo, para ela mesma, armas íntimas e pessoais contra a carência que decorre da superficialidade coletiva.


O monólogo de Bianca produz a atmosfera fantástica na qual ela procura refúgio. Recuperando fantasias do tempo de criança, a protagonista busca reconstruir relações perdidas, reinventar situações que a levaram ao instante da narrativa e estabelecer vínculos inexistentes na vida prática. Em contraponto às suas invencionices subjetivas, a personagem tem de lidar com a realidade da prostituição, com o mundo invertido do prostíbulo em que as regras normativas são outras. No bordel, o sexo é banal e a fidelidade é tabu, as relações humanas fundam-se na agressividade, na posse e na fugacidade do prazer sexual e o amor é evitado a todo custo.


A necessidade de fuga vai se tornando tão urgente com o decorrer da narrativa, que pouco a pouco o relato ganha formas de fluxo de consciência desesperado, insano, quase ininterrupto. Como ser humano que vivesse em um aquário, Bianca perde o fôlego e beira o delírio, sempre no rastro da sensação de ilusão oferecida pelos contos de fadas alimentados por sua mente, já que a realidade a sufoca e oprime, física e psicologicamente. Nesse sentido, o romance faz lembrar Verão no aquário, de Lygia Fagundes Telles: em ambos, a protagonista deseja escapar de qualquer maneira das amarras familiares e das condições asfixiantes em que são levadas a viver. A ambientação e a posição narrativa fazem com que a aproximação entre leitor e personagens seja estreita e que passemos a dividir com eles o desconforto e a vontade de libertar-se da apneia constante que pode levar à morte de qualquer coisa essencialmente humana.


A noite inteira na minha cabeça aqueles olhos brilhantes, a maioria das pessoas passa pela vida sem ser olhada daquele jeito. A noite inteira e agora a possibilidade de que ele queira mesmo apenas falar sobre a Lisa me decepciona. Estou sendo burra e até cega mas é o delírio da vertigem, a gente sabe a fatalidade da queda mas é tudo tão incrível até chegar ao chão, a emoção na boca do estômago. Sei que vou tombar destruída mas nessas horas a força é tanta que dá a impressão de que me recupero fácil de qualquer coisa. Olhos assim são o abismo explícito. (p. 126, 2017)

Desse isolamento do mundo real nocivo à personagem, resta-lhe a solidão que encharca cada linha da obra. Bianca se vê às voltas com os próprios devaneios, revivendo as próprias memórias, povoando os próprios sonhos, cada vez mais reclusa em si mesma, sem que esse retraimento represente qualquer traço de segurança. Ainda que promova o autoinsulamento, a protagonista é diariamente como ilha invadida pelos bárbaros colonizadores que pagam para usufruir de seu corpo jovem e sozinho. As frequentes violências que a moça precisa enfrentar fazem-na forte, mas também levantam uma questão importante: por que a mulher tem que ser tão forte assim se quiser sobreviver?


Eu menina querendo tanto que o sexo acontecesse e é impressionante como uma coisa pode ser tão ruim se vem sem a gente querer, talvez não haja mais nada no mundo que possa ser tão bom mas tão insuperavelmente trágico se vem sem a gente querer, acho que só mesmo a morte. A morte até pode ser boa quando a gente quer, mas nada de chegarem aí bem no meio da sua vida cuspindo a morte por todos os lados sem você querer.  (p. 167, 2017)

Diante da solidão corrosiva e dos abusos cáusticos, o único apoio de Bianca é uma mulher como ela, Lisa. A relação conflituosa mas inabalável entre as duas faz com que Fadas e copos no canto da casa seja um romance sobre a solidão feminina e o poder transformador da sororidade. Seu final em aberto presenteia o leitor com a possibilidade de participar ativamente dos rumos dessas personagens, mulheres que progressivamente descobrem uma na outra a força necessária para arrebentar os muros blindados do viveiro que as separa do restante do mundo.



 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também à entrevista com a autora no canal do LiteraTamy:


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