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Sob camadas de neve, ETHAN FROME irrompe como um romance possível


Ao referir-se a Ethan Frome, a autora norte-americana Edith Wharton afirmou que, quanto ao seu tema, “havia que tratá-lo sem circunlóquios e de forma concisa, assim como a vida sempre havia apresentado os meus protagonistas; qualquer intenção de elaborar ou complicar seus sentimentos falsificaria o conjunto. Eles, esses personagens, eram, na verdade, meus afloramentos de granito; só que eles ainda estavam prestes a emergir do solo e eram um pouco mais articulados”. Nessa espécie de defesa da própria obra, presente como introdução ao romance (inclusive na nova edição brasileira publicada pela Editora Penalux, com tradução de Chico Lopes), Wharton justifica o seu esforço em trazer à tona um livro cujas chances de sobrevivência seriam aparentemente escassas, potencializando os efeitos da obra sobre seus futuros leitores.


Situados em Starkfield, condado fictício em Massachusetts, Nova Inglaterra, os personagens de Ethan Frome estão, não por acaso, enraizados em um infértil, inexpressivo e gélido território. Narrado em primeira pessoa, o relato tem início com uma frase emblemática, digna de figurar entre as mais memoráveis de toda a literatura, por exprimir com honestidade o tipo de episódio conhecido por qualquer um que já tenha buscado saber mais sobre a vida de terceiros: “Ouvi a história, detalhe por detalhe, através de várias pessoas, e, como sucede geralmente em tais casos, de cada vez foi uma história diferente.” Interessado pela frequente aparição do conhecido – porém misterioso – Ethan Frome, ruína de homem na casa dos cinquenta anos, que anda coxeando pela cidade, o narrador vai em busca de respostas às enigmáticas particularidades que caracterizam e mistificam aquele que nomeia o livro.


Residente em uma cidade na qual a medida do tempo se dá primordialmente pelo número de invernos passados, Ethan transmite “o frio profundamente acumulado” da mais fria estação do ano, singularmente rigorosa em Starkfield, a qual afirma-se como traço indispensável ao caráter do lugar e de seus nativos, como se as espessas faixas de gelo, castigando o espaço físico do condado, pesassem também sobre as decisões e temperamentos de quem nele habita. Através da reunião de informações obtidas na consulta a habitantes de Starkfield, o narrador do romance retorna à juventude do protagonista, recontando, em dez capítulos, os principais acontecimentos que o levaram à austeridade e à resignação patentes em sua fisionomia.


Casado com Zeena, mulher hipocondríaca cuja frieza incide sobre o ambiente e sobre quem quer que esteja por perto, Ethan vê-se acorrentado e oprimido pelo cárcere glacial da negatividade da esposa, até a chegada de Mattie, faísca calorosa e libertária em meio à frigidez característica de seu lar. Parente de Zeena, a órfã Mattie é rejeitada pelo restante da família e resgatada pela falsa generosidade da prima, encontrando em Starkfield a única oportunidade de manter uma existência digna, sob a condição de servir à enferma anfitriã e auxiliá-la nos afazeres domésticos. Em tal ambientação hostil e infértil, floresce a afeição de Ethan pela jovem acolhida.


Contra todas as possíveis expectativas, Wharton não constrói o sentimento amoroso do protagonista sobre idealismos rasos, nem tampouco sobre a concepção do amor inusitado como alternativa à mediocridade. Ciente das limitações impostas pelos costumes moderados de Starkfield e da objetividade do local frio no qual assenta sua história, a autora retrata um relacionamento lacônico, cujas tímidas centelhas acalentadoras mostram-se pertinentes à realidade na qual se localizam. Essa estruturação romântica é exposta de maneira sucinta, pelo detalhamento de um cotidiano que paulatinamente se transforma. Já que não se pode contar com diálogos expressivos, dada a naturalizada taciturnidade dos personagens, há uma abundância de descrições que, sutil e efetivamente, exprimem tudo o que há de considerável enquanto prenúncio do momento clímax da narrativa.


Depois de um acidente que quase o desfigura, Ethan acaba tornando-se uma espécie de fantasma, castigado pela natureza e por seus conterrâneos por agir de modo diferente ao que se esperava no moralizador período vitoriano americano, punido por não conter seus desejos e subverter, ainda que mínima e falivelmente, a conduta lapidar do pequeno e conservador condado. O narrador distante e neutro não transporta o leitor à posição de juiz opressor, dentro dos conformes das convenções sociais que regiam o comportamento dos personagens à época, nem tampouco alude ao que seria moralmente correto em um suposto julgamento dos personagens. A narrativa conta com a participação do legente para assistir e avaliar, através de seus próprios princípios éticos, a trajetória e o destino de cada figura da história.


Cleber Pacheco, em resenha ao blog Translittera, chamou atenção às “muitas camadas de neve” que “nos remetem aos sentimentos soterrados e reprimidos” dos personagens. De fato, cabe a quem lê escavá-las, e os artifícios de Wharton obtêm êxito em despertar no leitor o ímpeto de fazê-lo. A narrativa lúcida e bem-articulada da autora norte-americana contém a friagem necessária para nos transportar a Starkfield e nos fazer descobrir, junto ao curioso narrador, o quão penetrante e irreversível pode ser o frio – no corpo e na alma.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 


Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


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