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CORAÇÕES RUIDOSOS EM QUEDA LIVRE: experiência do mergulho em contos



Semelhante a seu romance anterior, O frágil toque dos mutilados (Autêntica, 2015), Alex Sens publica mais um livro com título encantador. Corações ruidosos em queda livre (2018) traz em seu nome a junção dos três contos que o compõem, associados pela noção de morte que permeia cada um de maneiras distintas.


Dentro de um ônibus em movimento com vários passageiros, o texto inicial, “Corações ruidosos”, destaca-se por sua estrutura polifônica que dá voz a um personagem por parágrafo. A mãe que sente falta do filho, o rapaz com a camiseta da Holanda, o padre perturbado por segredos comprometedores: todos eles um terreno diferente pelo qual passeamos, viajando juntos em direção ao desconhecido. Sonora e visível, a narrativa faz o caminho de ida e o caminho de volta, oferecendo uma viagem completa pelos territórios dos personagens. Primeiro cada voz tem seu espaço especificamente delimitado, para que depois todas elas retornem, reconhecíveis pela competência com que foram estabelecidas, ainda que em total colisão.


Apertando os olhos, as mãos, as pernas já há algum tempo separadas pelo desejo, pensou com força numa oração. E quanto mais orava, mais se lembrava de sua voz, da delicadeza prismática de sua voz, daquela inflexão provocante no evaporar das frases, nas palavras longas que formavam seu canto solíticos, e o órgão acima, suntuoso, sempre uma escultura multifálica e ao mesmo tempo flagelada pela imposição das liturgias, do que em seus tubos atravessava com virginal luminosidade. Órgão. A palavra libertava a carne da cueca cinzenta de algodão. Espalhava a palavra a língua a saliva do padre, num salto de serpente, órgão e língua, cúmplices de uma música carnal, íntima, cujas notas seriam produzidas a partir de arrepios, de glotes abertas, de glandes intumescidas, de dentes cravados em costas suadas, colorindo a pele como o Sol coloria a igreja ao estuprar seus vitrais. (2018, p. 31)

O conto seguinte, “Em queda”, é o clímax da obra, costurando o livro pela tensão que seu enredo provoca. Tendo como cenário uma galeria de arte em qualquer tempo e em qualquer lugar, a estória relata a transformação da morte em espetáculo, assistido avidamente por um público doentiamente passional. O primeiro dos “Fatos” descritos tem como ponto de partida a apresentação de uma pianista, cuja música conseguimos ver e sentir através das palavras. Todas as apresentações narradas são acompanhadas pelo personagem Lucas, que posteriormente as transcreve em seu diário, com a inquietude dos que estão repletos de um vazio que buscam preencher com o incompreensível. Como leitores, nós também servimos de plateia ao desprezo dos visitantes pelo expressionismo ultrapassado do norueguês Edvard Munch em face à exibição inovadora dos artistas que performam a morte, garantindo à arte certa integridade muito mais profunda do que a mera representação de algo.


O fato é que O Fato é a nova arte. A morte é o novo prato. E, sendo alimento ou moda, nunca sairá do mercado: as pessoas continuarão sentindo a grande e latente necessidade, precisarão deste impacto divisório que os coloca diante do mistério e do fascínio. Todos ali têm uma fome saciada após uma longa e dolorosa digestão emocional. (2018, p. 71)

Depois de questionar o conceito de arte e os atributos necessários para ser um artista, o próximo conto traz outro tom, outra forma, outra força. Mais descontraído, “Livre” é uma reunião de cartas escritas por Leonor, mais uma personagem feminina inesquecível de Sens, que em seu primeiro romance já nos havia apresentado a igualmente irônica e ácida Magnólia. A protagonista do último texto é uma autora de livros infantis que decide escrever missivas a pessoas próximas, com uma crueldade tóxica tão inusitada que beira a risibilidade — um tanto quanto sinistra, é verdade, mas, ainda assim, jocosa. A narrativa parece não ser mais que um apanhado de desabafos, até que ao final tudo ganha sentido, dotando seu próprio título do sarcasmo típico da narradora.


Do conjunto dessas histórias surge um livro de muitas camadas. As situações narrativas de cada conto são como reverberações de eventos passados, de outra esfera, que constituem a personalidade tão bem explorada de seus protagonistas. Resta-nos a sensação de estarmos, também nós, em queda livre, saltando da cobertura de um grande edifício, com velocidade suficiente para observarmos, com frio na barriga, todos os andares dessa construção completa. Pode ser que nos espatifemos ou que o solo seja emborrachado — em todo caso, quando se trata de um livro de Alex Sens, sempre vale a pena o mergulho.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


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