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Relação amorosa entre homem e animal em BUTCHER'S CROSSING


Aos 23 anos, Will Andrews decide abandonar seu curso em Harvard para explorar Butcher’s Crossing (1960) que, na década de 1870 (período em que se passa o segundo romance do escritor norte-americano John Williams), tinha na caça de búfalos seu tesouro econômico. Atraído pela filosofia de Ralph Waldo Emerson, pensador estadunidense responsável por um dos mais importantes ensaios acerca da natureza, Andrews parte em busca de uma forma autêntica de viver, distante do academicismo teórico de Massachussets, mais próximo do empirismo oferecido pelas padrarias do Kansas.


Naquele momento, Butcher’s Crossing apresentava-se como uma resistente fronteira entre a modernidade e o arcaico, na iminência de receber uma linha de trem que prometia avanços econômicos ao povoado. Como é de se esperar do Western americano, na aldeia habitavam figuras marcantes, como o velho comerciante de peles McDonalds, o versado caçador Miller, seu companheiro de caça, Charley Hoge, e o genioso Schneider, hábil esfolador de animais. É com estes três últimos personagens que o protagonista resolve partir em uma expedição de caça a búfalos no Colorado, local perigoso e há muito não explorado.


O movimento de deslocamento é crucial para a trama de Butcher’s Crossing, mas o que deve ser levado em conta acima da viagem em si é a razão pela qual Andrews escolhe participar dessa travessia. O motivo é revelado ainda nas epígrafes da obra, a começar pelo trecho de Emerson, já apontado anteriormente como um conceituado filósofo dos assuntos da natureza. Sendo um romance de formação, Butcher’s Crossing se propõe a mostrar os caminhos através dos quais seu protagonista se forma, os meios que ele encontra para traçar sua própria identidade. Andrews aparenta receber um chamado da natureza selvagem, intuindo que somente lá, e não através dos livros, será capaz de aliviar a inquietude juvenil que o instiga. Por outro lado, a sentença de Melville parece alertá-lo para os eventuais perigos que a vida na selva oferece – sem, contudo, impedi-lo de arriscar-se na excursão.


A partir de uma narrativa neutra, mas altamente descritiva, John Williams constrói mais um livro cujo protagonista pretende delinear certo propósito à própria existência. Assim como William, personagem principal de Stoner (1965), no começo de sua história Andrews é um jovem em iniciação, procurando seu lugar no mundo. A diferença é que a premissa de Butcher’s Crossing é diametralmente oposta à de Stoner: ainda que em ambos haja um sujeito que segue um chamado incompreensível em prol da definição de sua identidade, enquanto William Stoner permanece estagnado no mundo confortável dos livros, Will Andrews movimenta-se na selva perigosa. Essa relação entre os dois romances expõe certa inclinação de John Williams às narrativas de formação nas quais os personagens procuram em algo externo o sentido da vida (ou ao menos um calmante para suas angústias internas), mas revela também a eficiência do autor em atingir, de maneira primorosa, um mesmo intento por diferentes vias.


Conforme adentra o isolamento selvagem das Rochosas do Colorado, o comportamento de Andrews passa a estar diretamente ligado à relação que ele firma com a natureza e com as aberturas imprevisíveis que ela oferece. Pouco a pouco, nota-se que entre o protagonista e o meio natural não se estabelece uma relação de sobrevivência, mas algo maior que isso. A narrativa transforma a natureza em uma figura personificada. Então, entre Andrews e a vida selvagem gera-se uma espécie de romance. Não seria de todo correto afirmar que o protagonista se animaliza, nem tampouco que Butcher’s crossing é um romance naturalista. Andrews não é influenciado pelo ambiente, mas acolhido, absorvido por ele. Nessa simbiose, natureza e homem dividem a mesma identidade.


Ocorreu-lhe que não fugira do búfalo feito uma garotinha enjoada diante do sangue e do fedor das tripas para fora. Ficara nauseado e fugira devido ao choque de ver o búfalo, momentos antes orgulhoso, nobre e cheio da dignidade da vida, então abatido e impotente, um pedaço de carne inerte, destituído de si mesmo, ou da noção de si mesmo, obrigado a ficar pendurado grotesca e zombeteiramente diante dele. Aquele animal não era mais ele mesmo; ou pelo menos não era aquilo que havia imaginado. Sua identidade havia sido aniquilada e, naquele extermínio, Andrews sentira a destruição de alguma coisa dentro de si, que não tinha sido capaz de enfrentar. Então, dera as costas e fugira. Mais uma vez, no escuro, suas mãos saíram de debaixo das cobertas e percorreram seu rosto, buscando a protuberância da testa fria e áspera, acompanharam o nariz, passaram pelos lábios fechados e esfregaram-se na barba grossa, à procura de seus traços. (2016, p. 183)

Naturalmente, Andrews não é o único afetado pela aventura selvagem. Assim como desperta no protagonista o hábito da contemplação, a natureza também acaba por revelar traços nos outros personagens que partem à caçada. À medida em que avançam, instaura-se neles uma nova percepção de tempo e de espaço. Os caçadores estão submetidos a mudanças climáticas e intempéries impressionantes, tão bem descritas que nós, leitores, sentimos sede, fome, frio e medo como se fôssemos fisicamente transportados às cenas do livro.  Depois de muitos meses isolados na vastidão do Colorado em contato com os búfalos, os homens revelam suas qualidades mais perversas, tresloucadas e irracionais, descontadas no trato com os animais e no convívio entre eles. Junto de Andrews, assistimos à dança atroz, bárbara e secular em que a ganância do homem é o maestro, investindo contra os recursos naturais. Acompanhamos a identidade e a humanidade se perdendo enquanto o homem tenta dominar a natureza – e também testemunhamos, horrorizados, sua retaliação.


“Esses moços”, disse McDonald com desdém. “Sempre acham que existe alguma coisa mais para descobrir.” “Sim, senhor,” disse Andrews. “Pois bem, não existe”, disse McDonald. “Você nasce e é amamentado com mentiras, e depois desmama com mais mentiras, e então aprende mentiras mais sofisticadas na escola. Você vive uma vida inteira à base de mentiras, e então, talvez, quando está quase morrendo, você se dê conta de que não existe nada, nada além de você mesmo e daquilo que você poderia ter feito. Só que você não fez, porque todas aquelas mentiras lhe fizeram acreditar que existia alguma outra coisa na vida. Então você descobre que poderia ter conquistado o mundo, porque é o único que sabe esse segredo; só que, a essa altura, é tarde demais. Você está velho demais para isso.” (2016, p. 302)

Butcher’s Crossing é o romance capaz de provocar reações físicas no leitor através de suas descrições impecáveis, além de suscitar em quem lê, com igual intensidade, as mesmas questões enfrentadas pelo protagonista. O segundo romance de John Williams é mais um indício de que tudo o que o autor se dispôs a narrar resultou infalível. Seja na vastidão das padrarias ou no isolamento das bibliotecas, seus protagonistas jamais estão imunes ao desassossego – nem tampouco aqueles que os leem.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo sobre o livro no canal LiteraTamy:


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