A literatura de Lygia Fagundes Telles é pautada pelo realismo intimista, em que o senso de realidade é norteado por acontecimentos, visões e modos de narrar ofertados por sujeitos particulares. Nesse sentido, a narrativa polifônica de As meninas (1973) é o modelo de excelência para comprovar essa afirmação, na medida em que nela tanto o viés realista quanto o intimista são explorados em mais alta potência, ambos coexistindo sensivelmente.
As meninas que intitulam este terceiro romance da autora paulistana são as amigas Lorena Vaz Leme, estudante de Direito, de comportamento guiado sobretudo pelo ideal romântico de feminilidade, Lia de Melo Schultz, a subversiva militante de esquerda que estuda Ciências Sociais e a absolutamente linda Ana Clara Conceição, estudante de psicologia assombrada pelo passado marcado por abusos sexuais e pelo presente dominado pelo uso de drogas. Em 1969, ano em que os acontecimentos se passam, as três vivem no Pensionato Nossa Senhora de Fátima, ao redor do qual ronda o espectro da ditadura militar brasileira, até infiltrar-se de maneira irreversível e direta nesse espaço e na vida de suas habitantes.
O livro merece constar entre os mais ousados da literatura brasileira, em primeiro lugar porque discute e relata explicitamente a barbárie dos porões da ditadura enquanto esta ainda estava em vigor no país, reproduzindo corajosamente, e pela primeira vez na ficção do Brasil, um depoimento de tortura de um preso político. Aliás, a razão pela qual As Meninas escapou da censura é, no mínimo, curiosa: segundo a própria Lygia (conforme consta no documentário “Lygia, uma escritora brasileira”, produzido em 2017 pela TV Cultura), o censor responsável por avaliar o romance achou-o tão enfadonho que não passou da leitura de suas primeiras quarenta páginas – ainda bem. Assim, os efeitos da intervenção do regime político na vida individual da burguesia paulistana são amplamente questionados através da íntima trajetória das três amigas no intervalo de tempo em que a história acontece. Ainda que a opressão as afete de maneiras e com forças distintas, considerando as próprias diferenças de personalidade das meninas, o autoritarismo constitucionalizado as cerceia com igual eficiência, mantendo-as em um mesmo cativeiro.
Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam Traidor da pátria, traidor! Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo. Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de torturas. Iniciou-se ali um cerimonial frequentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. (p. 148, 2009)
Ao ser questionada quanto ao caráter subversivo do romance, a autora respondeu: “E como eu poderia escrever um romance morno em pleno ano de 1970? Comecei a planejar o texto em 1970. Somos testemunhas e participantes deste tempo e desta sociedade com todos os seus vícios”¹. A obra de Lygia é de fato um testemunho ardente de seu tempo e de todas as questões levantadas e abafadas por ele. Por meio das vozes de Lorena, Lia e Ana Clara, são colocados em pauta assuntos até hoje polemizados, como a emancipação sexual feminina, a homossexualidade, o uso de drogas e o papel do militarismo dentro do Estado.
Em segundo lugar, a obra é ousada também na forma. Além das protagonistas que assumem a narrativa pelo fluxo de consciência, há um quarto locutor que alinhava o discurso das três, observa e une os pensamentos, falas e ações das personagens, com a acurácia típica do narrador lygiano. Assim, as vozes das meninas se misturam, alternando-se sem aviso prévio, reforçando pelos seus próprios discursos a identidade de cada uma delas. Tal alternância frenética, e às vezes inesperada, faz com que o tempo do romance atue de modo muito particular, diferente do tradicional. Os dois dias do enredo parecem semanas, pela intensidade que seus episódios ganham através dos fluxos de consciência orientados pelo discurso indireto livre (também característico dos textos de Lygia). Daí a noção de narrativa fragmentada, fracionada por três narradoras tão dissemelhantes. Nesse sentido, a estrutura aparentemente caótica e confusa sobre a qual o livro se sustenta é dada justamente como reflexo do caos instaurado num país sob o jugo ditatorial, que o desestruturou em níveis culturais, sociais e privados. Essa foi a maneira com que a autora magistralmente uniu o discurso particular ao coletivo, potencializando as ações individuais ao contexto comunitário e vice-versa, como acontecia de fato na época em que qualquer ação individual poderia ser questionada em termos comuns. O que ocorre, então, é que essa fragmentação reproduz a realidade política na qual a subjetividade era ameaçada pela tirania.
Ser ou estar. Não, não é ser ou não ser, essa já existe, não confundir com a minha que acabei de inventar agora. Originalíssima. Se eu sou, não estou porque para que eu seja é preciso que eu não esteja. Mas não esteja onde? Muito boa a pergunta, não esteja onde. Fora de mim, é lógico. Para que eu seja assim inteira (essencial e essência) é preciso que não esteja em outro lugar senão em mim. Não me desintegro na natureza porque ela me toma e me devolve na íntegra: não há competição mas identificação dos elementos. Apenas isso. Na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou, eu estou: estou competindo e como dentro das regras do jogo (milhares de regras) preciso competir bem, tenho consequentemente de estar bem para competir o melhor possível. (p. 191-192, 2009)
As protagonistas têm modos diferentes de reagir em relação às condições que lhes são impostas. Lorena, que permanece dentro de seu quarto durante a maior parte da narrativa, projeta no exterior o que lhe é interno, esperando que um dia seus sonhos romanticamente idealizados possam ser realidade. Lia, por sua vez, transforma a revolução social em ideal pessoal, colocando sua trajetória particular em prol daquilo que considera o bem comum, em movimento oposto ao de Lorena. Já Ana Clara se mantém à margem, à deriva das manifestações coletivas e em constante fuga dos próprios sentimentos, atingindo esse grau de alheamento pelo uso excessivo de narcóticos e bebidas. No entanto, ainda que seja possível reconhecer os posicionamentos peculiares a cada uma delas, as meninas não são personagens caricatas. A recatada e infantil Lorena coloca em jogos temas considerados subversivos e toma as rédeas de situações complicadas de forma madura, a Lia rebelde é romântica em muitos pontos, sobretudo no que diz respeito ao relacionamento amoroso com Miguel, e a sublime Ana Clara carrega sobre as costas as consequências grotescas do vício. Lygia Fagundes Telles descreve a sobrevivência resistente de seres políticos, sim, mas antes de tudo subjetivos e em primeiro lugar, mulheres, em meio às mudanças decorrentes da política ditatorial que fortaleceu a repressão sobre indivíduos já reiteradamente reprimidos.
Desse modo, a autora questiona os tradicionais estereótipos que recaem sobre o sexo feminino, adentrando a complexidade e as contradições naturais dessas personagens, como se elas fossem pessoas reais, com vícios e virtudes. Por isso é tão difícil acompanhá-las de maneira tão íntima – e até mais difícil nos despedir delas. O final do buildungsroman é emblemático, na medida em que demonstra que as protagonistas deixaram de ser meninas para tornarem-se algo a mais, menos exemplares e mais velázquianas, unindo em um só quadro luzes e sombras que selam sua formação.
¹ TELLES, Lygia Fagundes. In: Personagens gostam da vida, como nós. O Estado de São Paulo. Caderno 2, p. 5, 12 de outubro de 1995.
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:
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