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A animalização do humano pela ausência do animal em A VEGETARIANA


“Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano”. Assim tem início o ganhador do Man Booker International Prize 2016, A vegetariana. Dividida em três partes narradas por vozes distintas, a primeira seção da novela é homônima ao livro e tem como narrador o marido de Yeonghye, mulher banal que, assaltada por sonhos tenebrosos envolvendo sangue, carne crua e labirintos assustadores, resolve parar de comer quaisquer produtos de origem animal. Sua disposição não termina aí: a protagonista também joga fora toda a comida da geladeira e passa a se esquivar do esposo para fugir do cheiro de carne que, segundo ela, exalava de seus poros.


Embora o título da obra possa causar a impressão de que sua trama tem como foco o vegetarianismo, isso não acontece. Em primeiro lugar, porque a personagem principal, quase sem voz dentro da própria história, limitando-se a narrar (provavelmente para si mesma) os sonhos que a perturbavam, jamais se autodenomina vegetariana. Esse é o título que lhe dão seus familiares, seu cônjuge, seu cunhado e sua irmã, responsáveis por relatar, respectivamente, cada um dos atos que compõem o livro. Mas a protagonista em si declara apenas que não quer mais comer carne. Ela não se classifica, não se insere em alguma categorização. Além disso, suas motivações não têm nada em comum com as que geralmente levam as pessoas ao vegetarianismo. A razão pela qual Yeonghye decide eliminar a carne de suas refeições parte de um ponto absolutamente íntimo e intransferível: seus sonhos. A gênese de seu vegetarianismo é seu próprio inconsciente.


Foi tudo tão real. A sensação de mastigar carne crua, o meu rosto, o brilho dos meus olhos. Parecia o de alguém que conheci pela primeira vez, mas com certeza era meu rosto. Quero dizer, pelo contrário, parecia tê-lo visto tantas vezes, mas não era meu rosto. Difícil explicar. Era familiar e desconhecido ao mesmo tempo… Essa sensação real e esquisita, terrivelmente estranha. (2018, p. 17)

É possível reconhecer em seus sonhos a manifestação daquilo que Freud chamou de unheimlich, ou, como geralmente traduzido ao português, o estranho. A sensação que a acomete é a do estranhamento, inusitadamente causado por algo que, ao mesmo tempo, lhe é familiar. Na tentativa de livrar-se desse insólito que perturba seu subconsciente, o que Yeonghye acaba fazendo é deixá-lo escapar do plano onírico ao plano coletivo do real. Nesse sentido, a narrativa assume ares kafkianos: sem conseguir se desprender dos sonhos intranquilos, a protagonista os abraça, e a partir de então ostenta uma metamorfose integral, que ultrapassa os limites da sua dieta alimentícia e passa a afetar sua relação com o outro. Acima de tudo, o que deve ser levado em conta é que, rejeitando a carne, Yeonghye nega os princípios básicos sobre os quais seus relacionamentos se fundam. O conflito se arma não pelo seu regime vegetariano, mas por toda a mudança estrutural que decorre dessa decisão. Quando se torna vegetariana, ela deixa de ser a esposa ordinária, a filha submissa, a cunhada desinteressante. Ela se transforma em unheimlich.


Então, por que “A vegetariana” como título? Porque este é não é um livro narrado por Yeonghye e sim pelos outros, e é só até aí que eles são capazes de enxergá-la. O marido, o cunhado e a irmã limitam-se a ver a protagonista como uma mulher que se fez vegetariana e, por isso, complicou suas vidas. Nesse movimento, Yeonghye permanece calada enquanto seu âmago se expande. Segundo Vinicius Jatobá, em resenha ao Estadão, A Vegetariana “é uma narrativa bélica travada no coração de uma família atingida pelo mistério de uma interioridade inacessível”. De fato, diante do silêncio que a protagonista reserva aos outros personagens, seu corpo atua como um limite que torna sua interioridade não só impenetrável pelo outro, mas também incompreensível a ele, sobretudo por ser um corpo material que tenciona, através da recusa, a transcendência.


Partindo daí, é interessante pensar no quê Yeonghye pretende transcender e por quê. Em entrevista ao The Guardian, a autora Han Kang afirmou que sua protagonista é “uma pessoa que deixa de comer carne numa tentativa de rejeição à brutalidade que vivemos”. A maior brutalidade a que Yeonghye está sujeita é a constrição violenta de seus relacionamentos. Gradativamente a personagem adota comportamentos mais livres, de início deixando de vestir sutiã para sair (o que incomoda o marido), passando pela abstenção da carne, até atos de maior alheamento, como deixar de conversar e se alimentar de uma vez por todas. Já que não temos acesso à voz e aos pensamentos de Yoenghye, é arriscado apontar quais seriam suas verdadeiras intenções com a mudança de hábitos, mas é possível presumir com base nos dados oferecidos pela visão dos narradores.


A segunda parte do livro, narrada pelo ponto de vista do cunhado de Yeonghye, talvez traga os momentos em que a protagonista pareça mais livre – ainda que, na verdade, só esteja em outro tipo de prisão. O artista plástico, marido de sua irmã, fica obcecado pela cunhada ao saber que ela ainda possui uma mancha mongólica no corpo, típica dos recém-nascidos. A partir de então, ele passa a se sentir sexualmente atraído pela cunhada, se aproveitando da vulnerabilidade em que ela se afunda cada vez mais para consumar seus próprios desejos. Nesse momento, Yeonghye vem tomando atitudes que denunciam sua vontade de conversão a um ser diferente do que sempre fora, se desumanizando. O cunhado se beneficia sordidamente dessa vontade para oferecer, através da arte erótica, a transformação que ela tanto almeja, como quem se aproxima de uma criança.


A mancha mongólica, aliás, revela não apenas certas inclinações pedófilas do cunhado, mas também aparece como um importante sinal de que algo da essência primitiva de Yeonghye insiste em permanecer. Sua propensão às plantas e vegetais, primeiro como alimento e depois como forma de viver, é algo que talvez a mancha mongólica já prenunciasse. Se examinada simbolicamente, a marca em sua pele indica uma relação indissociável com as raízes, com misteriosas origens pré-natais, irrompendo de seu interior de modo definitivo, para tomar conta do corpo físico até então resignado às normas externas.


Olhou para seu traseiro contendo a respiração. Sobre as duas colinas macias, havia duas covinhas, chamadas “sorriso de anjo”. De fato, a mancha do tamanho de um polegar estava mesmo estampada na parte de cima da nádega esquerda. Como ainda podia estar ali? Ele não conseguia compreender. Parecia uma mancha de machucado, levemente esverdeada. Mas se tratava mesmo da mancha mongólica, não havia dúvidas. Era algo que remetia a tempos remotos, anteriores à evolução ou ao processo de fotossíntese. Ele percebeu que, inesperadamente, aquilo não tinha nada de erótico; estava mais para algo relativo ao vegetal. (2018, p. 80-81)

“Árvores em chamas”, parte final do livro, narrada sob a ótica de Inhye, irmã da protagonista, destaca a presença de certas críticas sociais, até então latentes na narrativa tão centrada nos indivíduos enquanto seres isolados do restante do mundo. Ainda que não saibamos exatamente em que tempo e espaço a história se passa, é possível identificar a opressão nociva a que Yeonghye está sujeita desde antes do vegetarianismo e, na última parcela da novela, constatar o despreparo da sociedade para lidar com distúrbios mentais, em grande medida causados pela repressão aplicada por essa mesma organização social.


A vegetariana é um retrato em três atos da desumanização de uma mulher que, constantemente oprimida, acaba liberando pelo corpo o surreal que habita seu interior, resistindo à vida encarceradora de sujeito do sexo feminino. Essa resistência ganha forma em seu propósito de abandonar a carne, voltando-se aos vegetais como uma possível via de libertação da condição humana que a aprisiona. Pouco a pouco, Yeonghye deixa de estar no mundo como ser humano e passa a existir em estado vegetativo, distanciando-se dos costumes, preferindo a letargia das árvores ao movimento desumano dos homens.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo sobre o livro no canal LiteraTamy:


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