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Andrés Caicedo compõe um monólogo desafinado em VIVA A MÚSICA!


A música é o trabalho de um espírito generoso que (com esforço ou não) reúne nossas forças primitivas e nos oferece-as de volta, não para que possamos recuperá-las: para que conste que elas ainda estão por aí, as pobrezinhas, e que sentem a nossa falta. Eu sou a fragmentação. A música é cada um desses pedacinhos que antes tive em mim e fui soltando a esmo. Eu estou diante de uma coisa e penso em milhares. A música é a solução para aquilo que eu não enfrento, por estar perdendo tempo olhando a coisa: um livro (nos quais já não consigo avançar duas páginas), a curva de uma saia, de uma grade de ferro. A música é também, recuperado, o tempo que eu perco. (p. 72)

Permeado de gírias comuns na Colômbia dos anos 70, Viva a música! é um monólogo desvairado de María del Carmen, jovem universitária da classe média alta de Cáli, cidade que atua como cenário e personagem indispensável à narrativa de Caicedo. Já nas primeiras páginas do livro, enquanto se apresenta, a protagonista se diz “loira, loiríssima”, dirige-se diretamente ao leitor para lembrá-lo de sua prometida capacidade de ser cativante, revela não entender muito de música e admite estar lendo, superficialmente e sem grandes interesses, O Capital, de Karl Marx. Tudo isso é dito de um modo forçadamente autossuficiente e despretensioso, revelando paradoxalmente os verdadeiros traços do caráter da privilegiada María: mimada, prepotente, preconceituosa e perdida em meio a uma geração igualmente sem rumo.


Nas reuniões quase sempre noturnas do círculo social de María predomina a lei da aparência, regida sobretudo pelo uso das drogas. Desejosa não apenas de fazer parte do grupo, mas de sobressair dentro dele, a loira autoproclama-se rebelde, singular e autêntica inúmeras vezes, quando na verdade não passa de uma caricatura burlesca do que seria a juventude pop de seu tempo. O insuportável senso de importância da protagonista é em tal grau exagerado que mesmo a sua crueldade narcísica soa falsa. Para ela e seus companheiros, que contam os dias como se valessem por anos, a passagem do tempo é algo superficial e enfadonho, revertido em sede pelo imediatismo que causa ao leitor a sensação de atropelamento da narrativa, onde tudo é absorvido sofregamente pelos personagens. A juventude que cerca María e na qual ela deposita a culpa pela sua insatisfação pessoal é completamente excessiva.


Buscando livrar-se de uma individualidade resumida em descontentamento e fracasso, os jovens personagens de Viva a música! encontram nas drogas um artifício que lhes oferece certa desindividualização, na medida em que os unem como massa uniforme feita de homogênea futilidade. No que diz respeito à María, seu maior entorpecente é a música. A protagonista é capaz de senti-la, ainda que não a entenda propriamente, e chega a sofrer de abstinência musical. Ela vive, sim, pela música, e de uma maneira nada saudável. Fascinada sobretudo por composições em língua inglesa (como aquelas feitas por Eric Clapton e pelos Rolling Stones), a todo tempo a loira espera libertar-se de algo e demonstrar ao leitor – e a si mesma – que através das canções que acompanham sua vida frenética, desregrada, repleta de festas, sexo, bebidas e narcóticos, conseguirá atingir essa autonomia pela qual tanto anseia. O fato é que ela falha na tentativa: sua liberdade é forjada e nada genuína.


Saí para a rua e vi um céu tão claro! Uma lua gigantesca e um vento das montanhas, profundo, acompanhou a compreensão total do momento: que tudo nesta vida são letras de música. Talvez o que estou contando agora se encaixe em outra ordem inferior, vai lá saber. Assim que eu terminar, o leitor sairá para beber alguma coisa, e teria sido melhor que em vez de escrever eu tivesse falado do jeito que gosto, que minhas palavras não fossem senão filamentos no ar, linhas vencidas, não importa: começo a falar e ninguém mais me segura, e não faço outra coisa que repetir letras de músicas, porque antes de mim existiu um músico, alguém mais ousado e mais amável de mim que permite que qualquer um cante sua letra sem assumir responsabilidade nenhuma, e em alguma manhã uma música entra na sua cabeça você fica repetindo o dia inteiro como uma espécie de marca para cada um dos atos tristes, um daqueles dias nos quais me proponho a ação mais triste de todas […]. Mas eu desço do trem e sinto o aroma do povoado e me percebo mais sozinha do que ninguém e caminho por ali, sem rumo, cantando a canção que ficou na minha cabeça, ficou na minha cabeça, e naquela noite sonhamos com outra e amanhã vamos estrear outra letra, e assim vai indo. (p. 102-3)

María – incapaz de compor melodias – escreve pressupondo um leitor, com o objetivo de ser lida, mas reconhece e verbaliza o inevitável malogro de sua empreitada, uma vez que para ela a escrita, a literatura, e qualquer outro tipo de arte, são e sempre serão inferiores à música no exercício da expressão humana. E já que o assunto é música, o tom da narrativa mostra-se um tanto quanto desafinado. No texto, que começa de modo estimulante e decai gradativamente em sua ansiada psicodelia, nota-se certa dificuldade em encontrar a voz da protagonista, que definitivamente não convence, especialmente enquanto figura feminina.


Como retrato de uma classe em época e lugar específicos, no entanto, o romance é bastante satisfatório, embora esta mesma especificidade (admirável em um panorama geral) em certos momentos possa reduzir o livro à condição de obra datada. Vê-se muito da própria biografia de Caicedo na construção de Viva a música!, especialmente nas incontáveis referências ao suicídio, causa mortis do escritor, considerado o “Kurt Cobain da literatura colombiana” e “precursor de Roberto Bolaño”. Da excelente versão brasileira publicada pela editora Rádio Londres, com tradução de Luis Reyes Gil, cabe destacar a quantidade extraordinária de referências musicais que compõem o romance, organizadas no final do livro pela ordem em que aparecem na trama, bem como a completa discografia referida por María durante seu relato, listada por “Rosario Wurlitzer”, provável heterônimo de Andrés.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:



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