Em Uma vida pequena, Hanya Yanagihara descreve a vida de quatro amigos, desde o momento em que se conhecem durante a graduação, em Massachusetts, até quando mudam-se para Nova York, anos depois. São décadas acompanhando o pintor e artista plástico JB, o arquiteto Malcolm, o ator Willem e o advogado Jude, todos em busca de destaque na área em que atuam. Em aparente contraste ao título, o livro de Yanagihara é extenso, tanto em número de páginas quanto em abordagem de assuntos – bem como na profundidade com que os desenvolve. Ainda nas primeiras páginas, a autora desromantiza as relações familiares, recorre a inúmeras referências artísticas (sobretudo as norte-americanas), retrata importantes aspectos da vida universitária estadunidense, questiona a ideia padrão de felicidade e rebate a noção de identidade a partir do levantamento de concepções banalizadas, e consequentemente mal interpretadas, tal qual a pós-modernidade:
“ – Como o Judy aqui: nunca o vemos com ninguém, não sabemos a que raça pertence, não sabemos nada sobre ele. Pós-sexual, pós-racial, pós-identidade, pós-passado. – JB sorriu para ele, supostamente para demonstrar que em parte estava apenas brincando. – O pós-homem. Jude, o Pós-Homem.” (p. 105)
A escrita objetiva do livro, praticamente sem muitos rodeios, e as mudanças providenciais e imprevistas de narrador, contribuem para a atmosfera fortemente cinematográfica do romance. Enquanto narra o que o quarteto vai aos poucos conquistando, a autora aproveita suas trajetórias individuais repletas de conflitos para revelar mais informações sobre “o Pós-Homem”, personagem principal do longo romance. É dele, o protagonista de identidade misteriosamente indefinida, que parte o ponto de vista para o estabelecimento de conceitos fundamentais ao avanço da obra e ao convívio entre seus personagens: a justiça, a moral, a confiança, a amizade e, principalmente, a definição de uma vida pequena.
A construção altamente visual e ativa do calhamaço assume um movimento de afunilamento que culmina no foco total em Jude e seus sofrimentos particulares. Esse formato de funil incomodou leitores que definiram a narrativa como pobre, vitimista, exagerada na tragédia pessoal do advogado. Alguns críticos foram mais duros em suas análises, como Daniel Mendelsohn na resenha ao New York Review of Books. Apontando o excesso de dor retratado no livro, o colunista acusa Yanagihara de desonestidade intelectual e afirma que a dinâmica da obra remete a um strip-tease sádico intolerável.
Não é improcedente o reconhecimento de uma parcela sádica no romance. A própria fotografia que ilustra a capa das mais conhecidas edições do livro remete em um primeiro momento à expressão de dor e agonia, quando, na verdade, trata-se da face de um homem em pleno orgasmo, registro do fotógrafo Peter Hujar que dedicou uma série de trabalhos fotográficos à captação do gozo masculino. Assim, convenhamos, é imediatamente reconhecível e absolutamente inegável a mistura de sofrimento e prazer no trabalho de Yanagihara – seja na escolha da capa, na obsessão da narrativa em descrever minuciosamente os suplícios do protagonista, ou na insistência do leitor em acompanhar avidamente o desenrolar da dolorosa trama – mas não ao ponto de reduzir o tijolão a um mero produto de sadismo injustificado.
Quando Mendelsohn defende que o verdadeiro tema de Uma vida pequena é a abjeção, ele é novamente injusto. Para além do padecimento e do aviltamento como recursos gratuitos de puro entretenimento, o romance vale-se deles de modo autêntico e agudo, superficialmente intangível. A miséria de Jude é mais que um simples adorno atraente porque é genuína, na medida em que concebe e sustenta os personagens e a trama de maneira original, renovando a fachada de heroísmo comumente representado na literatura. O protagonista de Yanagihara não busca a redenção, nem sequer crê merecê-la, parece não conseguir superar as adversidades cotidianas, mas ainda assim não deixa de ser um herói à sua maneira.
Através da dor que corrói e prolonga a existência de Jude, a autora delineia novos arquétipos de contentamento no mundo pós-moderno, contrariando a lógica dominante acerca do que é e do que deve ser a felicidade plena do homem no século XXI. A consistência das relações de afeto entre personagens masculinas marcadas por passados espantosos e tão diferentes umas das outras, dentro de um contingente urbano frio (e até hostil) como Nova York, garante a Uma vida pequena o resultado buscado por Yanagihara com sua obra, qual seja questionar o modelo de bem-estar mais almejado na atualidade e os meios pelos quais alcançá-lo.
Mas estavam na era da realização pessoal, em que aceitar algo que não fosse sua primeira opção de vida parecia fraqueza, algo desprezível. Em algum ponto, aceitar o que parecia ser seu destino deixara de ser uma atitude digna e passara a ser sinal de covardia. Havia momentos em que a pressão para alcançar a felicidade era quase opressiva, como se a felicidade fosse algo que todos deviam e podiam conquistar, e que qualquer tipo de concessão na busca por ela fosse, de algum modo, culpa sua. (p. 49)
Há entre as ressalvas ao romance a previsibilidade do final. Ainda na resenha ao New York Book Reviews, Mendelsohn reprova o fim já aguardado do livro como algo que qualquer leitor inteligente teria adivinhado já nas cinquenta páginas iniciais do calhamaço. Essa constatação, no entanto, em vez de indicar um defeito da obra, acaba apontando mais um êxito de sua autora, que pretendia assumidamente elaborar uma espécie de conto de fadas. Em sua fórmula, estes contos têm finais previsivelmente felizes e mesmo assim são lidos e relidos, jamais abandonados antes do desfecho. Embora todos os indícios de Uma vida pequena apontem a uma conclusão trágica, o que o caracterizaria como um conto de fadas às avessas, quem o lê não deixa de esperar pelo “felizes para sempre”. A competência de Yanagihara na emulação dos contos maravilhosos faz com que Jude, Willem, JB e Malcolm enlacem estreitamente seus leitores, de modo permanente, assim como Cinderela, Branca de Neve e Rapunzel entranharam-se definitivamente no imaginário ocidental.
A dinâmica de Uma vida pequena une personagens, trama e leitor e estabelece ligações emocionais entre legente e livro, ao ponto de provocar em quem termina a leitura os sentimentos de luto sincero, saudade e a sensação de que, por menor que seja, uma vida sempre pode valer a pena.
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:
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