Consideremos pais e filhos como duas gerações distintas que, de um modo geral, representam faces da nação a qual pertencem. Ao romance de Turguêniev, publicado em 1862, interessa, em primeiro lugar, aquelas gerações que compuseram a chamada intelligentsia da Rússia. Os pais da intelligentsia, aristocratas influenciados principalmente pela filosofia de Hegel, tinham por base a idealização romântica do espírito humano e a crença na arte como uma possibilidade de manifestação do belo inerente ao homem. Já a geração dos filhos, formada por jovens de origem social menos privilegiada que obtiveram acesso à universidade, até então exclusiva à aristocracia, era, portanto, o retrato de uma juvenilidade democrática sem classe social definida, em busca de um espaço ainda inexistente que a representasse. Da impossibilidade de encontrar tal lugar de pertencimento na estrutura social do próprio país, surge nos arrivistas russos a negação dos poderes vigentes que os desconsideravam, negação esta apelidada “niilismo” por Turguêniev, literariamente personificado e levado ao máximo por Bazárov, protagonista de Pais e Filhos.
O livro começa exibindo Nikolai Petróvitch Kirsánov, típico fidalgo russo, à espera do filho Arkádi. A narrativa tem início em 1859. Aproxima-se o fim do regime de servidão na Rússia, ainda incerto mas já latente, abalando sensivelmente as relações interpessoais que reverberam no coletivo. A chegada de Arkádi implica uma surpresa: está com ele Bazárov, seu amigo e grande influenciador, cujas ideias progressistas impressionam não só o filho de Nikolai, como toda a casa do fidalgo, para o bem ou para o mal. Reconhece-se esse domínio logo nas primeiras páginas do romance, quando Arkádi contém a expressão da saudade que sentira da região campesina e discorda do pai quanto à influência do local de nascença sobre o indivíduo, como que buscando defender a liberdade e a independência do homem em relação às suas origens:
– Em compensação, como é excelente o ar daqui! Que cheiro delicioso! Francamente, acho que nenhum lugar do mundo tem um cheiro como o desta região! E que céu…
Arkádi parou de repente, lançou um olhar enviesado para trás e ficou mudo.
– É natural – comentou Nikolai Petróvitch –, você nasceu aqui e tudo deve lhe parecer um tanto especial…
– Mas, pai, o lugar em que um homem nasceu não tem a menor importância.
– No entanto…
– Não, não tem importância, absolutamente nenhuma. (p. 19)
Se o filho, sob os ideais niilistas, pretende demonstrar rejeição aos ultrapassados princípios paternos, o pai, no entanto, mantém-se, se não aberto às ideias de Arkádi, ao menos conivente com elas, aceitando que ele as manifeste, refletindo sobre elas e consequentemente repensando sua própria condição e o conceito mesmo de nobreza, muito aquém da radicalidade com que seu irmão, o romântico incurável Pável, rejeita a juventude e suas convicções.
Embora Arkádi seja, de fato, um representante da geração dos filhos, é em Bazárov que ela dispõe de seu maior modelo. Tomado pelo chamado “niilismo” (que irá mostrar-se tão tóxico quanto o idealismo ilimitado), ele aparece como guia ideológico de Arkádi, plenamente fiel ao seu credo por coisa nenhuma. Bazárov despreza o que não é cientificamente comprovável, afirma convictamente que “um químico honesto é vinte vezes mais útil do que qualquer poeta”, desdenha sobretudo das artes e da escola do Romantismo, tão admirado pelas gerações anteriores, travando calorosas discussões com quem defende o contrário. O futuro médico somente aprecia os atos que comprovam utilidade prática, quase imediata. É racional, ligado ao positivismo e propõe-se a provar suas ideais a partir da razão, da materialidade. Por conta disso, empreende impressionantes debates com Pável Petróvitch, tio de Arkádi, homem romântico e idealista, defensor dos próprios ideais.
Ainda que Arkádi permaneça impressionado pelo caráter determinado de Bazárov durante a maior parte do romance, paulatinamente esse encanto vai sendo quebrado. Tomemos as impressões dos dois acerca do casamento. Como uma instituição legal, a ideia de matrimônio é veementemente rejeitada por Bazárov, enquanto que respeitada – e mesmo desejada – por Arkádi. A negação de Bazárov é tão extrema que ele desconsidera o conceito de amor para além do relacionamento biológico, de intuito reprodutivo, entre homem e mulher, até porque, para ele, é inviável estabelecer qualquer vínculo profundo com alguém do sexo feminino, gênero que lhe parece inferior ao masculino.
Essa visão da mulher como ser mesquinho é uma das certezas aparentemente inabaláveis de Bazárov que serão refutadas por ele mesmo. O aparecimento inesperado da fatal Ana Serguêievna Odínstova faz com que Bazárov, orgulhoso por enjeitar os ideais românticos, traia seu próprio coração. O moço ri da medicina e, no entanto, quer ser médico. Critica vorazmente a instituição familiar, mas é a ela que retorna, encenando, em certa medida, de forma involuntária (e talvez inconsciente) a tradicional parábola do filho pródigo.
O niilismo de Bazárov não se sustenta diante das forças naturais – e sobrenaturais – da vida, e é ainda mais insustentável se pensado no contexto russo em que é oferecido, ainda despreparado para uma revolução instantânea, como defendida pelos niilistas. Bazárov, ao encarnar o niilista por excelência, torna-se o paradoxo em pessoa, além de não oferecer nenhuma solução concreta ao que tanto reprova, mas pelo contrário, acabando por reproduzir aquilo que desaprova. Mesmo para preservar seus ideais revolucionários, completamente contrários à autoridade, às regras e aos costumes imemoriais, é obrigado a ceder à tradição, rendendo-se ao duelo contra Pável. Nesse sentido, seu final é ainda mais simbólico. Ele é incapaz de resistir à maior autoridade de todas.
Conforme reconhece a incoerência de certos posicionamentos retrógrados do amigo-mentor, que tanto defende a autonomia e o rompimento da jovem geração com o passado, e também identifica as já perceptíveis falhas da geração paterna, Arkádi caminha em direção oposta aos dois polos nos quais Pável, Nikolai e Bazárov se localizam. Por isso, Arkádi é o personagem de maior sucesso no livro, o verdadeiro “homem novo”, membro da burguesia que vigorará na Rússia a partir da década de 1860. Ele une seus ideais racionais à prática, capturando na medida certa o que havia de melhor tanto nos pais quanto nos filhos, para com o produto dessa união fazer prosperar sua propriedade.
Em uma palestra proferida em 1860, Turguêniev define dois tipos de homem, com base em duas fortes personagens literárias: Dom Quixote e Hamlet. O primeiro, representante da chamada “força centrípeta fundamental da natureza”, nas palavras do autor (com tradução de Rubens Figueiredo), “está inteiramente compenetrado da fidelidade ao ideal, em cujo nome é capaz de sofrer todas as privações possíveis e de sacrificar a vida”. O segundo, por outro lado, seria a “força centrífuga” do universo humano, diferenciando-se por seu egoísmo, pela inutilidade em relação às massas. Essas duas categorias humanas fundamentais estão respectivamente encenadas em Pais e Filhos, dadas as devidas proporções, por Pável e Bazárov. No livro russo, Turguêniev dispõe essas figuras em campos opostos de batalha, e a relação conflituosa que se dá entre eles funciona como uma espécie de eixo basilar do romance, dado que todos os acontecimentos da obra podem ser interpretados tanto pela visão quixotesca quanto pela hamletiana.
É interessante notar que grande parte dos traços das personagens nos é dada mais por eles mesmos, por seus monólogos interiores ou diálogos em contraste, do que pelas descrições feitas pelo narrador. O choque entre velho e novo, retratado pelos relacionamentos entre pais e filhos, fala mais sobre eles e sobre a própria Rússia em que vivem do que o discurso do autor. E não só as diferenças das duas gerações temporalmente distintas são delineadas por elas mesmas, como também as distinções entre todas as classes sociais pertencentes ao território russo à época. Isso só reforça a percepção da voz própria das personagens mais forte do que qualquer outro elemento da narrativa. Na verdade, o narrador arbitrário, seu não-posicionamento em prol de uma das posições principais e a falta de predileção para com os pais e para com os filhos foram motivos de crítica para os leitores da época, incomodados com o autor impassivo, neutro, menos preocupado em tomar partido de uma causa do que em expor as personagens de maneira convincente, verossímil, como se expusesse verdadeiros seres humanos, complexos e diferentes.
Isso é efetuado com êxito em Pais e filhos. Retomando uma imagem tão natural quanto a de gerações que se sucedem, o autor transforma a fundação familiar mais particular em uma metáfora à formação, ao desenvolvimento e a renovação de toda uma nação. Inegavelmente acurado em sua escrita, ele constrói uma narrativa irreparável, concomitantemente concisa e poética, mantendo-se confortável e sabiamente distante tanto dos pais quanto dos filhos, todos eles, hoje, já convertidos em passado, enquanto Turguêniev permanece, intocável.
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
Assista também ao vídeo sobre o livro no canal LiteraTamy:
Commentaires