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Reconstituir o tempo ancorado na memória — ou sobre "Os anos", de Annie Ernaux


A ideia de Annie Ernaux era escrever uma autobiografia impessoal para que seus anos não desaparecessem. É, portanto, uma inquietação íntima que a impele à escrita do Tempo in absentia dos sujeitos, o que já denuncia tanto o desacordo fundamental de qualquer história desenhada pelos homens que se coloque à revelia de si mesmos quanto os impasses dessa empreitada da autora francesa. Como garantir a impessoalidade ao tratar de uma matéria que se sustenta, justamente, pelo conjunto de personalidades? Se são os seres humanos, carregados de subjetividade, os responsáveis por computar os anos, como tratar deles de maneira imparcial? E mais: seria preciso (e possível) livrar-se da própria subjetividade durante a escrita de um texto supostamente impessoal? A chave de acesso a Os Anos (Três Estrelas, 2019, trad. Marília Garcia) está em não ignorar os traços pessoais da grande História, em abraçar sua parcela no termo “impessoal” e a partir daí reconhecê-lo como uma expressão do privado mesclado à coletividade. O conceito de impessoal deixa de ser a ausência do pessoal e se manifesta como a negação de uma pessoalidade presente. Mais do que o caráter privativo das experiências, Ernaux se dispõe a conservar o coletivo que elas reservam, assumindo a voz de um eu equânime, capaz de recolher sentimentos que traduzam bem o espírito dos tempos – ou do chamado Tempo eterno, o presente infinito.

A autora não abre mão de particularidades durante seu processo biográfico, pelo contrário: as escolhas narrativas que moldam o efeito de impessoalidade do texto têm como base preferências e vivências pessoais. A primeira página do livro, depois de sentenciar que todas as imagens desaparecerão, descreve algumas delas, como a de uma “mulher agachada urinando em plena luz do dia atrás de uma barraca que servia café à beira das ruínas, em Yvetot, depois da guerra, ia vestindo a calcinha já de pé com a saia levantada e voltava para o café” ou “as imagens de um único instante tocadas por uma luz que só pertence a elas”. A decisão de narrar vem para preservar registros do vivido resgatados de dentro de uma bagagem específica: suas lembranças. Esse conjunto de imagens rememoradas, ainda que soe como obstáculo à noção de impessoalidade, é, na verdade, ferramenta de grande potencial literário por vibrar significados coletivos. A memória em Ernaux surge como um amálgama sem começo ou fim, onde tudo é concomitante e coabita harmonicamente. A narradora não a evita, apesar dos riscos de colocar abaixo os efeitos de neutralidade de seu discurso, mas se aproveita dela como subterfúgio para a captura de um pensamento coletivo formado pela convivência de percepções singulares.


Seu principal estímulo, e não por acaso, são fotografias de seu acervo pessoal, retratando uma só mulher em várias fases da vida, da infância à velhice. Por meio delas, Ernaux evoca a História em cada pequeno gesto individual e mesmo nos atos privados. O figurino da moça nos permite supor em quais datas elas foram tiradas. Objetos que se escondem ao fundo denunciam hábitos de todo um corpo social. O próprio ângulo e o suporte em que elas se revelam são indicativos temporais cuja historicidade supera o caráter pessoal do momento gravado. O modo ora nostálgico, ora reprovador de descrevê-las também diz muito sobre a cultura em que se insere aquela que narra. E, por que não, de maneira sutil, nossa interpretação enquanto leitores é igualmente parte dessa biografia fotográfica dos anos. Ainda que as fotos, as quais acessamos apenas por descrições em escrito, retratem seres por nós desconhecidos, elas reavivam sensações familiares e eventos históricos que causam reações específicas a cada um. Nos reconhecemos na comum capacidade de reviver momentos pela aparição inesperada de uma frase, um tique, um cacoete linguístico, às vezes até de alguma palavra ou expressão deslocada do contexto em que se instaurou como marcante. Toda memória forma a História que interessa à Ernaux.


Seus meios de alcançar o impessoal são subjetivos e funcionam porque é disso que a coletividade se faz. A autora investiga o peso das grandes narrativas sobre os indivíduos cientes de sua curta, limitada e específica atuação no mundo regido pela impermanência. Uma das observações mais interessantes que Ernaux promove é a de experimentar os dias antes e depois da guerra. Aqueles que não vivenciaram os grandes conflitos mundiais sentem que nasceram no “tempo já começado”, onde a experiência da guerra pulsa soterrada sob camadas de aparente paz, indiferença e diversão, alimentadas pelos avós e pais que resistiram aos combates. Ocorrências marcantes para a História, e anteriores aos jovens da época de Ernaux, são pintadas pela memória dos familiares com tamanha vivacidade que seus filhos se transformam em pessoas que, à sua maneira, também vivem afetados por elas, até o ponto em que “as vozes dos convidados se misturavam para compor a grande narrativa dos acontecimentos coletivos, os quais, pouco a pouco, passamos a acreditar que tínhamos vivido”. Delineia-se então um dos muitos conceitos de cunho filosófico que a autora promove no livro, o da “memória dos outros”. Os seres se contaminam pelas narrativas relembradas e recontadas por outros. As memórias que escutam constituem suas próprias lembranças, formam seu tecido anamnético, e também por isso uma geração é sempre fruto da anterior, lidando com o pretérito a partir do ponto de vista que lhe foi transmitido. Diante disso, até onde seria possível delimitar passado e futuro? Onde cabe o presente nessa linha do tempo? Aliás, como pensar os anos por uma abordagem linear? O presente é um acúmulo de recordações coletivas e o tempo, que nos torna conscientes no mundo, é a própria memória. Tudo se propaga por ela.


Não eram apenas as histórias que transmitiam a memória do passado, mas também os modos de caminhar, se sentar, falar e rir, chamar alguém na rua, os gestos de cada um ao comer ou segurar alguma coisa. Estes modos passam de um corpo para o outro dos lugares mais remotos do interior da França e da Europa. Uma herança que era invisível nas fotos e que, para além das diferenças individuais e da distância entre a bondade de alguns e a maldade de outros, unia os membros da família, os moradores do bairro e todos aqueles que, segundo diziam, eram gente como a gente. Um repertório de hábitos, um somatório de gestos moldados pela infância passada no campo e a adolescência nas oficinas, antecedidas por outras infâncias, indo assim até o esquecimento. (p. 26-27)

Assim, faz parte do eu a “pré-história de si, onde todas as vidas precedentes se nivelam” (p. 50). Ernaux aponta a impossibilidade de decantar o líquido que preenche a humanidade, e o fluido do tempo adoçado pela memória permanece irreversivelmente homogeneizado pela intervenção da experiência, como uma colherzinha que mexe o chá ainda quente. De fato, é tão difícil afastar uma coisa da outra que, pouco a pouco, as pessoas incorporam os grandes acontecimentos do Tempo à passagem de suas vidas, até que o cotidiano vivido em seus núcleos particulares adquire a mesma ou maior dimensão histórica que uma guerra de proporções internacionais, afinal “no decurso da existência pessoal, a História não significava nada. Dependendo do dia, éramos felizes ou tristes. Simples assim” (p. 88).


Por outro lado, e ao mesmo tempo, despontam situações nunca antes elaboradas, impossíveis de associar a elementos internos ou dos anais porque são inéditas. A escolarização, por exemplo, propõe novas recordações. Uma memória nasce com a TV, outra com o walkman, as criações tecnológicas determinam com profunda distinção o correr dos anos, anunciando sem discrição o surgimento de novas identidades e experiências. Os ídolos, símbolos culturais do país, responsáveis por dar corpo a ideias que guiavam multidões, precisam ser substituídos porque suas vozes e imagens não mais representam o timbre e a postura do agora. A sociedade se vê carente de referências aos modos de existência moderna. Onde coabitam gerações distintas experimenta-se, a um só tempo, a estagnação e a transformação. É possível resgatar no passado certas maneiras de lidar com a originalidade, mas não com este novo especificamente. Os parâmetros anteriores tornam-se insustentáveis diante das mudanças do século XX. Até mesmo o cristianismo, crença praticamente inabalável por tantos séculos na Europa, enfraquece-se nesse período de intensa movimentação cultural. Uma das reações dessa sociedade desacostumada a absorver tantas modificações em tão pouco tempo é rechaçar as inovações que ainda não participam de seu precioso inventário de memórias:


Era deslumbrante observar as invenções que apagavam séculos de gestos e esforços e inauguravam um tempo em que não teríamos que fazer mais nada, segundo diziam. Mas também tudo era alvo de ataque: a máquina de lavar era acusada de gastar a roupa, a televisão de danificar a visão e de levar a dormir muito tarde. Vigiavam e invejavam os vizinhos que expunham os sinais de progresso nos objetos comprados, marcando uma superioridade social. Na cidade, os rapazes exibiam suas Vespas e rodopiavam em torno das moças. Firmes e orgulhosos em seus assentos, eles levavam uma delas na garupa, com o lenço amarrado debaixo do queixo, abraçando-os por detrás para não caírem. A vontade que tínhamos era de crescer três anos na mesma hora quando eles sumiam no fim da rua deixando um rastro estrondoso para trás. (p. 38)

Há portanto o gesto ambíguo de simultaneamente repelir e desejar o novo. As noções de evolução e progresso são redefinidas e acentuam a desigualdade entre as classes econômicas. Quem não possui itens recém-comprados é visto como ultrapassado. Ter coisas é uma maneira de se manter no presente, camuflando a inabilidade de lidar com tecnologias que desafiam o hábito por não encontrar correlações naquele passado transmitido pela rememoração familiar, fundamento identitário de um eu que deve deixar de existir. Depois da escassez da guerra, a abundância de objetos materiais representa prestígio e segurança, e acumular posses é como cumprir com a responsabilidade de garantir conforto aos descendentes. Ernaux analisa essas relações bizarras das pessoas com seus pertences, efeito criado pelo terror capitalista em prol da concentração desenfreada de objetos de “valor”.


A chegada cada vez mais veloz de novos bens de consumo fazia o passado ficar para trás. As pessoas não se perguntavam sobre a utilidade de cada objeto, simplesmente desejavam ter as coisas e sofriam por não ganhar o bastante para poder comprar tudo à vista. Virava um hábito preencher cheques e as “facilidades de pagamento” e os créditos eram descobertos. Todos estavam à vontade com as novidades, sentiam orgulho de ter um aspirador de pó e um secador de cabelo elétrico. A curiosidade era mais forte que a desconfiança. (p. 83)

Junto à sociedade de consumo ascende também o apagamento da memória. Há uma supervalorização do presente, do registro do agora desvinculado do passado que o concebeu. As fotografias, cada vez mais fáceis de capturar e que viram o fio condutor de Os Anos, articulam “a estranha presença dos seres ausentes” enquanto as fronteiras tradicionais do tempo, que compreendiam passado, presente e futuro como três circunstâncias distintas, anuviam-se cada vez mais. Através das fotos é possível não só manter os seres vivos, ainda que distantes, como também driblar o passado, que assenta-se como atributo material do presente, conservando-se por tempo indeterminado nos álbuns e prateleiras de uma posteridade ainda inexistente. A câmera fotográfica presenteia o mundo com a sensação de indelebilidade. Ironicamente, a ausência de contornos temporais e as ilusões de domínio do passado e permanência no futuro dificultam a consciência do presente, fundamental à formação de memórias. Os anos se reconfiguram na sociedade de consumo e em meio a isso a “memória não tinha tempo de associar os objetos a momentos de existência” (p. 187). As coisas tomam o lugar dos momentos, e as pessoas são dominadas pela duração dos objetos, calculada pelo valor que eles possuem a partir do momento em que saem das lojas.


Essa maneira reformada de se enxergar no tempo altera o modo de lidar com o tradicional. As inovações determinam o que permanece e o que é substituído. Novos desejos surgem e as antigas configurações de calendário e relógio ficam para trás. As relações com o sexo, com a masturbação, com o proibido e com o permitido, por exemplo, antes eram ditadas pelo ensino cristão:


A religião estava na base da vida das pessoas e era responsável por estabelecer o tempo. [...] Ler, a cada semana, as mesmas preces no missal, suportar o mesmo tédio ritual do sermão garantiam uma espécie de purificação probatória para os prazeres carnais de comer frango e bolos de confeitaria, ir ao cinema. Parecia uma aberração que professores e pessoas instruídas, com uma conduta irrepreensível, não acreditassem em nada daquilo. A religião era a única origem da moral e nos dava a dignidade humana sem a qual nossa vida equivaleria à vida dos cachorros. A lei da Igreja valia mais que todas as outras, e os grandes momentos da existência só recebiam legitimidade por meio dela: “Quem não se casa na igreja não se casa de verdade”, declarava o catecismo. Somente a religião católica tinha valor, as outras eram equivocadas e ridículas. (p. 40)

Com o passar dos anos, outras fontes de conhecimento e alternativas aos costumes já consolidados – como a legalização da pílula anticoncepcional, que parecia oferecer às mulheres “tanta liberdade quanto a de um homem” (p. 85) – desobstruem práticas até então interditadas ou mesmo desconhecidas. A mídia assume o papel de porta-voz da normalidade, sucedendo a igreja como a incumbida por ditar comportamentos. A sexualidade, então, se antes era censurada agora fica exposta nas telas, cada vez mais presente, como se não fosse um traço intrínseco aos seres humanos e sim uma afetação estimulada. A televisão anuncia processos de desumanização, de apagamento do humano, do sexo, da merda, da morte, das grandes narrativas de nossas origens. Enquanto os movimentos anticolonialistas fervem no continente africano, na França as notícias sobre a Argélia cansam os civis espectadores. Os argelinos lutam pela Libertação e a mocidade francesa, versada em leituras de Beauvoir e filmes de Godard, defende a descolonização do pensamento. Aí entra o “começo do esquecimento” (já que faz parte da memória escolher o que esquecer) e também a decisão de agir ou não diante do presente político conturbado pela necessidade de mudanças. A chamada juventude intelectual da França sente-se coagida a fazer algo, e o que nasce de uma mera análise letrada dos sistemas, dentro de alguns anos culmina na renúncia do conservador de Gaulle, na guerra do Vietnã e na ampliação dos direitos civis. Nesse ínterim, grande parte da América Latina ainda caminha para trás, no auge de seus regimes ditatoriais militares, mas Ernaux parece esquecer disso ao declarar que 1968 era “o primeiro ano do mundo” (p. 102). A que mundo ela se refere? Embora incomode, não cabe apontar esse traço eurocêntrico como falha de um livro que se propõe a descrever os anos sob uma perspectiva impessoal nos moldes franceses. Provavelmente, naquele momento o que importava à França era mesmo o que cabia dentro de seus próprios limites territoriais – e não segue sendo assim nos países desenvolvidos? Como eles se relacionam hoje com latino-americanos, árabes e africanos?


Apesar da presença inevitável das memórias sociais em seu discurso sobre os anos, Ernaux escreve que “os acontecimentos políticos só existem como detalhes”. A vida cotidiana encobre os mecanismos políticos que regem o funcionamento do mundo. As exceções são marcantes, como os atentados de 11 de setembro e sua decorrente globalização do tempo em órbita dos EUA. Aos indivíduos cabe determinar o que existe de positivo no tempo do antes e no tempo do agora, o que deve ser mantido e o que será eliminado da Memória. Esses processos coletivos se enquadram na vida da personagem que nos empresta sua perspectiva para passearmos pelos anos – ou, antes, sua vida se enquadra neles. O sujeito histórico que narra parte de um ponto de vista feminino, assumindo a voz de uma mulher em certa medida privilegiada, locutora que fala de si na terceira pessoa por quase todo o relato, caucionando a distância impessoal que sua empreitada exige. Tal escolha projeta honestidade ao discurso de um “eu” que agora só existe pela lembrança, pela observação distante de uma narradora que se reinventa. Esse sujeito é praticamente neutro, ainda que deixe escapar comentários e julgamentos à História, à política, aos comportamentos geracionais. Durante a maior parte do livro, Annie parece observar uma outra garota que encerra em si traços comuns à sua geração e aos seres do gênero feminino, de um modo amplo. Daí é possível entender um pouco sobre o que mudou no “ser mulher” com o decorrer dos anos.


A vergonha era uma assombração na vida das mulheres. A maneira como se vestiam e se maquiavam era sempre acompanhada por um “demais”: curto, longo, decotado, justo, chamativo etc. A altura dos saltos, com quem anda, as saídas e voltas para casa, o fundilho da calcinha no fim do mês, tudo era objeto de uma vigilância generalizada da sociedade. Para as que eram obrigadas a deixar a casa dos pais, a sociedade provia a Maison de la Jeune Fille, alojamento universitário separado dos rapazes, para protegê-las dos homens e do vício. Nada, nem a inteligência, nem os estudos, nem a beleza, contava mais do que a reputação sexual de uma moça, isto é, seu valor no mercado do casamento, do qual as mães, a exemplo das próprias mães, eram as guardiãs: se fizer sexo antes do casamento, ninguém vai querer ficar com você – ficava claro, nas entrelinhas, que só alguém em condição parecida poderia aceitar, isto é, a escória masculina, um doente, um louco ou, pior, um divorciado. A mãe solteira não valia nada e não tinha nada a esperar, só a abnegação de um homem que aceitaria acolher seu erro. (p. 69)

As referências artístico-culturais da época estendem às mulheres a sensação de pertencimento que antecede a liberdade almejada. O existencialismo de Sartre chega ao auge investindo fortemente sobre sua época, o feminismo de Beauvoir abre caminhos até então impensáveis, a nouvelle vague arrasta jovens entusiasmadas pela expectativa de desvio às normas. Há, no entanto, certo gap entre teoria e prática, e é preciso “ajustar a revolução às suas próprias possibilidades” (p. 105), afinal, nem só de leituras, filmes, criações e encontros artísticos se pode viver, sobretudo esposas e mães com as responsabilidades que suas funções exigem:


Sentadas no chão, debaixo de um pôster com os dizeres “Uma mulher sem homens é um peixe sem bicicleta”, esquadrinhávamos nossas vidas, acordando do torpor conjugal, e sentíamos que era possível largar marido e filhos, nos desligar de tudo, e escrever coisas cruas. Ao chegar em casa, a determinação esfriava e nos sentíamos culpadas. Já não estava mais tão claro como fazer para nos libertar – e nem víamos motivo para isso. Cada uma se convencia de que o marido não era tão machista e ficava hesitando entre os discursos – um que propunha a igualdade dos direitos entre homens e mulheres, e atacava a “lei dos pais”, e outro que preferia valorizar tudo o que era feminino (menstruação, aleitamento, preparação da sopa de alho-poró). De todo modo, pela primeira vez encarávamos nossa vida como uma caminhada na direção da liberdade. Havia um sentimento feminino prestes a desaparecer, o da inferioridade natural. (p. 104)

Para além dos limites de gênero, Ernaux enxerga com visão nítida as hipocrisias de sua classe, que deseja “sempre que houvesse no mundo países sem progresso para que pudessem sempre ser transportados de volta no tempo” (p. 107) em suas viagens exóticas e defende os imigrantes porque precisa deles “para os trabalhos que os franceses não querem mais fazer” (p. 124). O texto é denso, passeia pelas memórias da burguesia francesa desde a pré-globalização enquanto bota na balança o peso e a importância da experiência individual de uma mulher corajosa, que escreve no intuito de se encontrar como pessoa em meio à linha do tempo da História. As fotografias que estruturam o livro são como “reflexo da história coletiva projetado na tela da memória individual” (p. 49) e fazem, por vezes, o caminho oposto, porque uma coisa não existe sem a outra. Dessa intersecção ocupa-se Os anos e várias formas de medir o tempo são apanhadas por sua narrativa. Como uma “caixinha de memórias não oficiais” (p. 52), Annie monta uma obra na qual o leitor se reconhece porque faz parte da mesma amarra temporal que essa biografia impessoal. A conquista de uma impessoalidade histórica inédita é uma pretensão que se efetiva, mas seu ineditismo e o alcance de seus efeitos denunciam justamente a partícula de personalidade que só pode ter vindo de um sujeito singular, ainda que formado pela junção de multiplicidades. A pessoalidade de Ernaux molda o discurso para que ele soe impessoal.


Aquilo que este mundo inscreveu nela e em seus contemporâneos lhe servirá para reconstituir um tempo comum – aquele que transcorreu de muito tempo atrás até hoje – para, encontrando a memória da memória coletiva a partir de uma memória individual, apresentar a dimensão vivida da História. (p. 225)

De todo modo, a premissa da obra, um tanto paradoxal, se mostra mais complicada do que o desenrolar do texto e fica a sensação de que Annie atingiu seu intento com facilidade, unindo gradativa e naturalmente o “ela” ao “eu” do presente da escrita, grande trunfo do livro. Os anos contraria seu enunciado de abertura (“Todas as imagens vão desaparecer”) e alonga a duração das imagens que reconta. Para nós, resta buscar compreender a grandeza da história que acabamos de testemunhar, da reconstituição de um tempo eterno ancorado na memória.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 


Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:


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