Um homem negro, chamado Eu, viola a emenda da Constituição norte-americana que proíbe a escravatura e, já na Suprema Corte, prestes a ser julgado pelo processo “Eu contra os Estados Unidos da América”, decide relatar os fatos que o levaram até ali. A primeira frase do protagonista já estampa sem rodeios o caráter primordialmente ácido de sua narrativa: “Pode ser difícil de acreditar vindo de um negro, mas eu nunca roubei nada”. Essa é a premissa ousada e mordaz de O Vendido, uma das primeiras publicações da editora brasileira todavia livros.
Nascido na cidade de Dickens, Eu é filho de um cientista social negro, conhecido como “encantador de crioulos”, que toma o filho por cobaia de experimentos sociais insanos, de modo a ilustrar as relações de racismo que ainda imperam sobre os EUA. Antes de morrer em um confronto policial, o sociólogo tinha por missão de vida apaziguar conflitos externos – e internos – entre seus vizinhos, poupando muitos deles do suicídio e contribuindo ativamente em debates sobre os problemas enfrentados pela comunidade local em decorrência da desigualdade racial norte-americana. Depois que o pai é morto, espera-se que Eu, fracasso como experimento social, aproprie-se da função paterna à frente das questões de raça pertinentes à cidadezinha majoritariamente negra. Em certa medida, o protagonista de fato admite o ofício do pai enquanto pensador da causa negra, mas de uma maneira no mínimo inusitada: aceitando para si um escravo negro e reinstaurando a segregação racial em Dickens.
A brecha para o apartheid às avessas, dessa vez instituído por um negro, surge quando Dickens corre o risco de desaparecer do mapa, deixar de existir enquanto cidade. A extinção do local, tido por significativa parcela de seus habitantes como um traço fundamental e inerente a suas identidades, é mais um tipo de agressão tácita contra a população negra que ali vive. Diante dessa possibilidade, a solução encontrada por Eu é literalmente traçar uma linha que compreende o distrito e instaurar uma secessão em relação aos brancos. O movimento de separação, que se inicia dentro de um ônibus, passa a vigorar na escola e no comércio, até estender-se por todo o território, é suficiente para que a região recupere a atenção que lhe fora negada pelas autoridades. Uma vez que afeta o funcionamento regular do cotidiano dos brancos e passa a destoar dos conformes da nação como um todo, o sistema de segmentação racial em Dickens lhe confere certa relevância em relação ao restante do país, culminando no processo judicial em que o livro começa.
Na intenção de desmascarar as condições marginalizadas dos negros, mormente nos Estados Unidos, Beatty vale-se incessantemente da própria cultura norte-americana como testemunha do preconceito latente do país, o que pode distanciar significativamente leitores que não tenham muito contato ou familiaridade com as manifestações artístico-culturais dos EUA – talvez a única ressalva a ser feita frente à obra. A começar por Hominy Jenkins, ex-ator e único negro da série infantil Os Batutinhas, tão acostumado a interpretar papeis que reforçavam o estereotipo do negro subserviente e inferior a alguém que precisa da condição de escravo para sentir-se e manter-se vivo, pertencente a algum grupo:
Seja como for, imagino que a mariposa preta tivesse a mesma expressão de Hominy, aquele semblante subserviente inerente a todos os lepidópteros e humanos negros. Aquela resposta involuntária ávida por agradar, disparada sempre que alguém se aproxima numa loja e pergunta: ‘Você trabalha aqui?’. A expressão que mantém no rosto a cada segundo no trabalho exceto quando está no banheiro, o rosto virado em direção ao branco que passa por ali e que te dá um tapinha paternalista no ombro e diz: ‘Você está se saindo bem. Continue assim’. A expressão que finge atestar que o sujeito mais preparado ficou com a promoção, mesmo que tanto você quanto eles saibam lá no fundo que você é o cara mais preparado, e que o melhor cara de todos é a mulher do segundo andar. (p. 146)
Outro personagem, Foy Cheshire, pretende realizar alterações em obras literárias de língua inglesa que abordam o povo negro de modo ofensivo, propondo mudanças politicamente respeitosas em livros como Huckleberry Finn, As aventuras de Tom Sawyer, O Grande Gatsby e O apanhador no campo de centeio, ideias acolhidas do seguinte modo pelo combativo Eu:
(…) por que culpar Mark Twain por você não ter coragem e paciência para explicar a seus netos que a palavra ‘crioulo’ existe e que durante a vida superprotegida deles é possível que algum dia sejam chamados de ‘crioulos’ ou, pior ainda, que se dignem a chamar alguém assim. Ninguém jamais vai se referir a eles como ‘pequenos eufemismos negros’, portanto bem-vindo ao léxico americano – crioulo! (…) Essa é a diferença entre a maior parte dos povos oprimidos do mundo e os negros norte-americanos. Eles prometem jamais esquecer, e nós queremos que tudo seja expurgado do nosso histórico, posto num envelope fechado e enviado para a eternidade. Queremos que alguém como Foy Cheshire nos defenda perante o mundo com instruções para que o júri desconsidere séculos de ridicularização e estereótipos e que finja que os desolados crioulos diante deles estão começando do zero. (p. 110)
Também a música é resgatada como terreno profícuo ao levantamento de reflexões sobre a condição negra nos Estados Unidos a partir das referências trazidas por Beatty ao livro (e sobre a presença da música na obra há um excelente compilado de citações musicais do romance aqui). O fato é que a cultura norte-americana está impregnada pela desigualdade racial em suas diversas manifestações de um modo tão naturalizado e pernicioso que o espectro de uma divisão de negros e brancos acaba por unir e fortalecer Dickens e seus habitantes, por mais paradoxal que pareça essa relação.
Ainda que não haja nada de divertido na segregação racial, o romance de Beatty é carregado de humor, certamente a mais forte característica da narrativa. No entanto, o que o autor faz não é zombar das causas negras, mas sim esbugalhar e ironizar através do cômico a costumeira naturalização do racismo, sobretudo no que diz respeito aos hábitos norte-americanos. A risibilidade tóxica que permeia cada parágrafo de O Vendido escancara a hostilidade de um povo habituado a escamotear a própria discriminação. No vencedor do Man Booker Prize de 2016, nada se esconde, tudo se revela. Essa audácia é como um ultraje à grande parte dos leitores que reconhecerá em episódios do livro muitas de suas ações, conscientes ou não, que contribuem à perpetuação das distinções raciais. Não por acaso o próprio autor afirmou, em entrevista à Folha, que “o livro não é para todo mundo. Não foi escrito para ser”.
Isso acontece porque Beatty expõe sem pudores as fronteiras entre eu e outro que determinam as relações interpessoais, fronteiras estas ainda mais salientes quando as relações em questão se estabelecem entre o branco privilegiado e o negro negligenciado. Em matéria sobre O Vendido, Bernardo Carvalho destrincha o papel fundamental do outro na narrativa, afirmando que, dentro da literatura, “o discurso identitário revela sua ambiguidade, sua fragilidade e sua contradição quando nos damos conta do escopo semântico de ‘outro’, que abarca tanto o excluído como o inimigo, tanto a vítima como o algoz. Tudo depende do lugar onde estamos. O livro de Beatty aponta para o paradoxo desse sistema de representações que, a despeito de intenções politicamente corretas, ao dar visibilidade ao outro, ao assimilá-lo, no fundo o enfraquece, torna-o invisível, indefeso e inofensivo, termina por reduzi-lo ao mesmo.”
Tais traços paradoxais tocados pelo livro, juntamente à temática polêmica (ou polemizável), tornam O Vendido uma leitura difícil, na medida em que propõe uma diversão questionável, cuja sagacidade e humor de natureza duvidosa servem para escancarar um racismo que se pretende oculto, mas que em sua almejada passividade não deixa de existir e de atingir brutalmente o outro. A leitura de Beatty gera risos, mas também produz desconforto, constrangimento e nervoso, por revelar repentinamente certa perversão que sob disfarce constitui o leitor. Por mais que afirme ter sido despretensioso em seu feito e não ter buscado provocar arrependimento no legente ou dotá-lo de uma supraconsciência acerca de seus defeitos e virtudes, o fato é que o romance de Beatty incomoda, sim, mas mais do que isso: é necessário.
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:
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