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Enfrentar a contingência por meio da arte: uma leitura de A Náusea em tempos de coronavírus



Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi um filósofo francês muito conhecido pelas suas contribuições ao existencialismo. Uma das suas obras fundamentais é o imenso O ser e o nada (1943), um livro que carinhosamente me persegue há alguns anos; sempre que vou a alguma biblioteca, livraria ou sebo, ele me chama da estante, mesmo em meio a milhares de outros livros. Mas eu nunca acreditei estar suficientemente preparada para enfrentar O ser e o nada, se é que isso é possível. Não sei se vocês também têm essa relação com alguma obra ou autor específico, mas o fato é que quando recebi meu exemplar de A Náusea (1938) da editora Nova Fronteira, com tradução da Rita Braga, e soube que este era o primeiro romance do Sartre, ou seja, uma obra de ficção, decidi que começaria a lê-lo por este livro — o que já adianto ter sido uma boa escolha.


O romance traz como protagonista um historiador chamado Antoine Roquentin, um homem na casa dos 30 anos, que no momento da narrativa está numa pequena cidade fictícia da França, denominada Bouville, para estudar a vida de um marquês que viveu ali no século XVIII. O objetivo de Roquentin é escrever uma biografia desse marquês, mas no meio desse projeto ele acaba sendo acometido por sensações estranhas e incômodas que ele documenta em seus diários. Esses cadernos são supostamente encontrados por editores, como afirma uma nota inicial com ares de verossimilhança, e intitulados “A náusea”. Ou seja, o livro que temos em mãos é uma reunião dos diários de Roquentin às voltas com esse estranhamento ao qual, com o passar do tempo, ele dá o nome de Náusea, com letra maiúscula, uma verdadeira presença. Os diários começam em uma folha sem data, pelo seguinte parágrafo:


O melhor seria anotar os acontecimentos dia a dia. Manter um diário para que possam ser percebidos com clareza. Não deixar escapar as nuanças, os pequenos fatos, ainda quando pareçam insignificantes, e sobretudo classificá-los. É preciso que diga como vejo esta mesa, a rua, as pessoas, meu pacote de fumo, já que foi isso que mudou. É preciso determinar exatamente a extensão e a natureza dessa mudança. (p. 15)

O título anterior da obra era “melancolia” e por mais que o livro seja permeado por uma aura melancólica, o sentimento de Roquentin vai muito além disso. A melancolia é uma face dele, e não ele por inteiro. A náusea é um título muito mais adequado porque o protagonista está verdadeira e continuamente nauseado. Se você já se sentiu enjoado alguma vez, e eu acredito que sim, então sabe que a sensação de náusea é algo localizado fora do nosso controle, que nos impossibilita de estar no mundo racionalmente. É como se tudo perdesse o contorno e nossas únicas atitudes diante desse abalo são 1) tentar manter dentro de nós o que está se revolvendo, respirar até, com sorte, retomar o domínio das coisas ou 2) liberar o vômito e deixar que o interior se expresse desgovernado, aceitar a erupção. Bom, é justamente essa sensação que acomete Roquentin e como o primeiro trecho do seu diário nos permite perceber, sua reação ao engulho é buscar controlá-lo, impedir que qualquer coisa escape.


A partir daí, sua consciência fica potencializada. É como se ele enxergasse os objetos e as pessoas pela primeira e última vez, tentando capturar tudo. Essa atitude potencializa também o enjoo e ele capta seu entorno freneticamente nos diários, numa tentativa de recuperar a coerência. Ele tenta entender, por exemplo, se são as coisas que mudam ou se o que está mudando é a percepção do eu sobre elas. Crer que aquilo que é estático por natureza possa mudar e esteja mudando, soa como loucura, mas é o que o protagonista faz, e afirma:


O curioso é que absolutamente não me sinto inclinado a me considerar louco e vejo até, com toda evidência, que não estou louco: todas essas mudanças dizem respeito aos objetos. Pelo menos é disso que gostaria de ter certeza. (p. 16)

O mundo externo parece dotado de personalidade, como um animal vivo que toca o humano, e não o contrário. O protagonista é tomado pelo desejo de regularidade, de constância, de segurança, mas seu próprio texto (seus vestígios) é interrompido, inconstante, inesperado. Roquentin vai sendo levado pela existência sozinho, como uma garrafa vazia no mar. Ele abraça só a superfície da solidão, se mantém perto das pessoas para que a sensação de verossimilhança não se esvaia. Mas estando com elas, não consegue se homogeneizar na massa que insiste em cultivar as mesmas opiniões e comportamentos, e então é assaltado pelo medo, pela intranquilidade que acompanha o absurdo. Não é ausência de vida, mas traços de uma vida estranha. Não há mais refúgio a essa sensação. Ela se apresenta nas paredes, sempre ao redor, por todo lado, “sou eu que estou nela”. A náusea nunca chega a ser vômito, permanece como uma dor monótona, a véspera do que não vem.


Para um historiador, acostumado a enxergar a realidade como uma linha temporal em que os acontecimentos se depositam, essa deformação do real é especialmente assustadora. Roquentin nota que a organização histórica do mundo não é suficiente para conter a existência, e passa por um processo de reformulação do tempo, como se estivesse simultaneamente alienado e submerso nele. Temos então um historiador perdendo o próprio passado, cada vez mais conformado de que só existe o agora em toda sua imprevisibilidade, enquanto o que já foi é mero fragmento de imagens nas quais recordação e ficção se misturam, como significantes esvaziados de significado independente. Limitado ao agora e abandonado no presente, ele se torna incapaz de fugir de si mesmo enquanto é tomado pela angústia de existir apenas no presente. “Meu pensamento sou eu: eis por que não posso parar. Existo porque penso... e não posso me impedir de pensar.” (p. 119) O tempo escoa os sentidos das coisas, as palavras tomam o lugar das imagens e formam as lembranças, e então o narrar parece sobrepor-se ao viver. Não só a narrativa tem mais lógica que a vida, mas também a ficção mostra-se mais ordenada do que a própria história, porque a ficção funciona pela lógica da conciliação, porque na ficção é possível escolher sem a interrupção das casualidades.


Se transferíssemos essa percepção para o agora, veríamos que muitos de nós estamos acometidos por essa mesma sensação de náusea, apavorados pela força do acaso que destrói qualquer ilusão de regularidade e de controle que pudéssemos ter sobre as coisas. Hoje nós vivemos uma situação de crise em que uma epidemia mundial altamente contagiosa domina nossos pensamentos e dita nosso comportamento. De uma hora pra outra, fomos impedidos de sair de casa, de trocar afeto e toque com as pessoas que amamos, de realizar atividades banais do nosso cotidiano. Acredito que a minha geração nunca experimentou tão fortemente os efeitos do acaso quanto experimenta agora. É totalmente compreensível que fiquemos agoniados com isso tudo, e ainda que A náusea seja um livro de perspectiva individualista e nós estejamos sofrendo os efeitos de um vírus em escala global, há um pouco de Roquentin em cada um de nós. Mas o que fazer diante dessa impotência frente à imprevisibilidade das coisas?


A atitude de Ronquentin é tentar capturar o tempo para dotar de ordem e sequência ao menos os acontecimentos da própria vida, como se esta fosse uma história cujo final já se conhece. Seu primeiro passo nessa direção é a escrita do diário, que oferece certa impressão de domínio dos dias. Depositar delírios, medos e emoções em palavras, organizá-los em frases e parágrafos, ajuda a preservar um pouco de sanidade. Nesse processo, o protagonista descobre algo importante:


[...] para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse. Mas é preciso escolher: viver ou narrar. (p. 55)

Quando a vida se torna insuportável, narrar é uma alternativa poderosa. A arte então parece o modo perfeito de se aventurar. Entre as manifestações da arte, a música. Roquentin escuta maravilhado a canção Some of these days na voz de Ella Fitzgerald, repetindo-se invariavelmente na vitrola, imune ao acaso, com início, meio e fim bem definidos e inalteráveis, propósito e ordem, na contramão da inconsistência que rege o mundo real e a vida dos seres humanos. Estar em contato com a arte contida no disco musical suspende a sensação de náusea, o pavor de que tudo pode acontecer, a fragilidade ameaçadora da rigidez dos sentidos, facilmente interrompida ou mesmo aniquilada. A gratuidade da existência que desorienta nosso senso de realidade pode ser esquecida por alguns instantes por meio da arte. Uma música, um livro, um filme, até mesmo uma fotografia ou uma pintura, nos lembra um dos preciosos lemas árcades que foi varrido pela modernidade: carpe diem, aproveite o dia. Roquentin redescobre que aproveitar o instante é tudo o que ele pode fazer, porque o instante é tudo o que ele tem. Diante da possibilidade de que tudo aconteça, nada mais pode ser feito além de gozar o presente, a vida presente.


A contingência existe sempre, é verdade, mas em determinados momentos ela é quase palpável, e a sensibilidade de que tudo pode acontecer, de que a qualquer hora podemos não estar mais aqui por inúmeros motivos, beira a paranoia, causa pânico, provoca náusea. O absurdo é a chave da Existência, e o absurdo transforma tudo em nada. A náusea é essa evidência ofuscante, tão ofuscante que tudo o mais perde o contorno, tão evidente que é inescapável porque vem da consciência, e a consciência faz o homem. Roquentin é a Náusea. A Náusea sou eu. Nós somos a Náusea.


Aceitar essa verdade oferece certo tipo de liberdade, mas uma liberdade da qual não podemos nos livrar; ou seja, uma liberdade-prisão, aterradora. Mas é possível escapar do enjoo, mesmo que não seja possível escapar da contingência nem da morte. Narrar é um modo de desviar da ausência de razão, porque narrar é assumir o controle de uma história, delinear seus limites, decidir seu destino, ordenar aquela realidade e manter-se vivo como se quer, ainda que numa existência inventada. Por isso em tempos de crise, como o que vivemos hoje, nessas ocasiões em que o Acaso enfia o dedo na goela da humanidade, a arte é mais importante que nunca. Porque ela oferece a possibilidade de escapar da náusea.


Saiba mais sobre o livro assistindo ao vídeo no canal do LiteraTamy:





 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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