A Fúria (Companhia das Letras, 2019, trad. Livia Deorsola) é um livro de contos que transitam pelos campos do fantástico, mas afirmar somente que eles se enquadram no realismo mágico tipicamente latino-americano não é suficiente para dar conta da literatura de Silvina Ocampo. Suas narrativas parecem formuladas por um inconsciente em pleno sonho, o que também soaria batido não fosse a ênfase naquilo que há de único no devaneio subconsciente de cada indivíduo. É como se a matéria narrativa de Ocampo fosse sua própria consciência onírica, terreno fértil em cores ocres, figuras perturbadas e enredos dissimulados, tudo a um só tempo tremendamente original e carregado de certa ancestralidade maravilhosa. Como bem dito por Sérgio Tavares, Silvina “faz do estilo um aspecto de gênero”¹ e com isso funda uma nova categoria, o realismo mágico ocampiano que, como não poderia deixar de ser, é tanto singular quanto estranho (não à toa frequentemente aponta-se sua correspondência com o unheimlich freudiano).
O primeiro conto da coletânea é “A lebre dourada”, clara alusão às fábulas infantis que costumam trazer esse simpático animalzinho como protagonista. O tom fabular e a ausência de moralismos se estendem pelas estórias seguintes, em seus desfiles de duplos que se abraçam e tomam o lugar um do outro e de objetos com tanta personalidade que podem até mesmo determinar quem vai para o céu e quem vai para o inferno. Nos textos de Silvina, o mal é preservado em prol da decência e a miséria que beira o absurdo é o que há de mais concreto na realidade de algumas personagens que os protagonizam. Esses trinta e quatro relatos inventados com “crueldade inocente e oblíqua”², como dito por Jorge Luis Borges, fazem pensar: quantas vidas e formas de vivê-las cabem em um mesmo mundo?
É de se esperar que o conto escolhido para nomear o livro do qual faz parte seja, em alguma medida, representante desse todo que integra. O título “A fúria” sugere ao menos duas interpretações; a primeira diz respeito às erínias (ou fúrias) que segundo as mitologias grega e romana eram personificações da vingança, punindo os mortais pelos seus pecados. A segunda, mais literal, nomeia o rompante de ira descontrolado, que dominando quem o sente é capaz de cegá-lo ao ponto de cometer irracionalidades, absurdos cruéis. Qualquer que seja a acepção adotada, o nome do livro recupera ora a magia do mitológico, ora o insólito do real que explode de dentro espantando quem está de fora, duas possibilidades propícias ao clima das narrativas e familiares ao imaginário humano, ainda que de feitio extraordinário. O conto que carrega o título traz um protagonista desequilibrado, que tenta se redimir praticando maldades, como fúria de si mesmo. Tal lógica do contrário, em que para se chegar a determinado objetivo o caminho passa pelo seu oposto, assalta umas tantas outras figuras do livro, promovendo situações de insensatez e indefinição pertinentes à loucura. Nesse sentido, a escolha titular se justifica.
Senti tonturas, náuseas. Daquele sétimo andar, contemplei a rua, pensando em como seria minha queda, caso me atirasse daquela altura. Uma banca de frutas, caixotes de lixo ao pé do prédio (os lixeiros deviam estar em greve) e um parapeito alto me atrapalhavam na hora de imaginar a cena. Para me acalmar, tentei me concentrar nessa ideia cheia de dificuldades. Tinha o poder, que agora não tenho, de me desdobrar: conversei com as pessoas que me rodeavam, ri, olhei para todos os lados com os olhos cravados no fundo daquele precipício com caixotes de lixo, com frutas e com homens passando. Tudo era menos imundo do que a sua cara. "A quantas músicas, a quanta gente, a quantos livros tenho que renunciar para não compartilhar os mesmos gostos com você?", pensei ao aolhar para dentro do apartamento através do vidro da janela. "Quero minha solidão, a quero com mil caras impessoais." (p. 111)
Os contos em primeira pessoa são os melhores, mais potentes pela sua imersão total na alucinação particular adorada por quem narra. Os narrados por personagens crianças, então, têm um toque extra de magia, já que a infância, esse tempo que é (ou pelo menos espera-se que seja) por si só o tempo do maravilhoso, em Silvina aproxima-se drasticamente da perversão, uma pitada de mau gosto fascinante e que casa bem com o ambiente da obra. Para Juliana Domingos de Lima, “mesmo os personagens adultos muitas vezes deixam vir à tona o que guardam de infantil e, portanto, de perverso e egóico, como se revelassem o submundo de nós mesmos, narrado – isso é bem importante – sem melindres, sem superego”³. Os narradores — sempre não-convincentes, principalmente pelo quê de insanos que parecem ostentar como garantia de que são personagens ocampianos, despertando nossa desconfiança — não parecem exatamente a mesma pessoa, mas sim assombrados pelas mesmas presenças, possuídos pelos mesmos domínios, por uma realidade carregada de irregularidades na qual elas continuam a viver, sem hesitar, até depois que a manifestação do estranho se integra a ela de modo visível e inegável, revelando que, na verdade, sempre esteve ali. Outro ponto curioso das histórias é que parece haver sempre uma razão para narrar, um ouvinte à espera. Tanto o contador de histórias quanto esse ouvinte (que pode ou não coincidir com o leitor) são materializados, projetados pelos contos.
Temos então uma extensa galeria de narradores como que abraçados por uma espécie de desatino inevitável, enlaçador, que toma o lugar da realidade tal qual conhecemos. O aspecto de sonho das narrativas não estica a tensão, pelo contrário, afrouxa, por vezes deixando vazar as possibilidades que faz com que os leitores imaginem. Os contos se sustentam pela instalação dessa coisa feita de ar, que a própria Silvina injeta nos textos para depois esvaziar junto da nossa expectativa. Esse efeito corresponde ao traço onírico da obra e não se aponta como um defeito do livro porque é a sua base; o que une as estórias é justamente essa abordagem blasé do inabitual, meio distanciada de tudo, um desvario silencioso e acatado pelos envolvidos — o que é deveras admirável, ainda que não funcione para todos os tipos de leitores, a menos não com imediata aprovação. Isso também porque embora os contos sejam muito bons, seus finais podem ser abruptos, até simplificados em relação às artimanhas das tramas. Além disso, a loucura característica dos personagens aparenta certa afetação ou artificialidade no narrar, um traço de psicopatia que pode incomodar, mas provavelmente foi desejado pela autora na construção desse mundo inacessível em sua estranheza, e não pelo insólito em si, mas pela maneira com que se lida com ele. Tudo isso foi sintetizado por Beatriz Sarlo, quando disse que “há em Silvina Ocampo uma espécie de rebeldia à racionalidade formal e à trama bem composta”² — em outras palavras, a impressão de malfeito dos contos ocampianos é, na verdade, comprovante de sua exímia constituição.
Terminamos A Fúria não como se o tivéssemos lido, mas como se o tivéssemos sonhado, como se os contos fossem pesadelos de um cochilo pós-almoço. Essa sensação faz lembrar um trecho de “A criação”, conto autobiográfico que integra a coletânea: “Talvez (estou agora obcecada por esta ideia) a obra mais importante de uma vida se produza em horas de inconsistência (ela existe, ainda que apenas aquele que a criou a conheça); desconfio que a minha andará perdida pelo mundo, buscando ocasião, com vontade e vida próprias” (p. 186-187). Que bom essa ocasião ter finalmente surgido aos leitores brasileiros.
³: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/08/29/Quem-foi-Silvina-Ocampo.-E-por-que-ler-seus-contos
Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
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