top of page

Ler A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS é um desafio moral



A narrativa de A casa das belas adormecidas (1961), traduzida diretamente do japonês por Meiko Shimon, começa in media res, descrevendo a chegada de um homem velho a uma suposta hospedaria, que, no entanto, não parece uma hospedaria convencional, dada a recomendação da mulher responsável por cuidar do local: “Não faça nenhuma brincadeira de mau gosto, por favor. Não vá, por exemplo, enfiar o dedo na boca da menina adormecida” (p. 9). A fala é dirigida ao velho Eguchi, de 67 anos, que vai pela primeira vez à estalagem com o intuito de passar a noite com uma menina já adormecida, sob o efeito de drogas pesadas que a impedem de acordar antes do nascer do dia. A chamada “casa das belas adormecidas” é frequentada sobretudo por idosos já sexualmente impotentes, mas ainda assim tem como regra principal a proibição total de sexo com as moças desacordadas – todas virgens. Eguchi vai até a casa por indicação de um amigo, que “dissera que ia lá sempre que o desespero de envelhecer se tornava insuportável” (p. 22). Entende-se que o objetivo da pousada é revitalizar, rejuvenescer homens que, já velhos, precisam cultivar de algum modo a sensação de domínio sobre os corpos femininos como garantia de masculinidade – esta, no fundo, tão frágil quanto folhas secas.


Desde o início do livro, uma atmosfera tenebrosa de pedofilia recobre a narrativa em terceira pessoa. No entanto, o narrador onisciente que, apesar de conhecer os pensamentos e sensações do protagonista, não o julga em nenhum momento, apenas transmite o que acha válido à história, como digressões que nos fornecem certas informações sobre Eguchi. O personagem, por outro lado, quer se convencer de que é diferente dos outros homens que frequentam a casa, os quais ele enxerga como velhos fracos, deploráveis e nojentos em sua velhice, diferente dele, por enquanto ainda a salvo dessas características: “A decrepitude hedionda dos pobres velhotes que procuravam aquela casa ameaçava atingi-lo dentro de alguns anos” (p. 43). Essa perspectiva narrativa nos faz pensar: como seria a história se narrada em primeira pessoa? Teria ela o mesmo impacto sobre o leitor?


O protagonista sempre é citado de modo adjetivado, é sempre o “velho Eguchi” em contraste reforçado às jovens que dormem. As visitas noturnas fazem-no recordar da figura materna, despertada pelo forte cheiro de leite que ele sente exalar das belas adormecidas. O quarto isolado em um local praticamente secreto, extremamente reservado, acaba assumindo a função de palco teatral (como apontado por Coetzee em sua resenha para o New York Review of Books) em que Eguchi reflete não só sobre a sexualidade e o erotismo na terceira idade, mas sobre a sua vida de um modo geral, até o ponto em que ele precisa recorrer à tal hospedaria para sentir-se menos só. Tristemente, o monólogo interior do personagem revela seu caráter inegavelmente misógino, que considera as mulheres todas iguais em sua inferioridade. Mesmo suas filhas, por quem deveria supostamente nutrir algum respeito ou afeto, são jogadas no balaio da mediocridade feminina aos olhos de Eguchi: “O corpo de sua filha não era diferente do de qualquer outra mulher. Era feito para ser subjugado à vontade de um homem. De súbito, veio à sua mente a imagem deselegante da filha naquela situação, e ele foi assaltado por um sentimento de humilhação e vergonha” (p. 60).


Em suas reflexões, o velho protagonista assume que nem considera humano o relacionamento que tem com as moças a cada noite, como se o fato de elas estarem dormindo, disponíveis ao bel prazer do homem desconhecido com quem se deitam, fosse suficiente para desumanizá-las, reduzi-las ao estado material de coisa, objeto usado para o agrado de seu possessor. A condição vulnerável das garotas validaria o seu seguinte pensamento: “se ele quebrasse o tabu da casa, seria possível dizer que fora por causa dela” (p. 44). Eguchi segue pelo caminho da negação do outro, da sua subjetividade, sempre imaginando as moças mortas, descaracterizadas.


Seu próprio casamento e a criação das filhas certamente eram considerados boas ações. No entanto, o tempo, o longo tempo em que ele supervisionou e teve poder sobre a vida dessas mulheres, ou até mesmo deformado suas personalidades, poderia ser considerado um grande mal cometido. Talvez o sentimento do mal tivesse ficado anestesiado, confundido com costumes e ordens sociais. (p. 79)

Ainda que de vez em quando ele questione a moralidade de seus atos, esses lampejos éticos não são o bastante para impedi-lo de voltar à casa das belas adormecidas, restabelecendo essas relações de poder em que ele tem o domínio completo das mulheres. Nesse sentido, a obra põe em questão os limites entre o bem e o mal e a concepção de cidadão do bem: será que essa definição não é muitas vezes válida apenas na convivência comum, nas relações públicas? O mal que se faz entre quatro paredes, longe dos olhos alheios, é o suficiente para invalidar o bem que se faz em público e vice-versa? O quanto este mal importa às convenções sociais?


Alguns leitores enxergam delicadeza e sensibilidade na narrativa de Kawabata, dizem que A casa das belas adormecidas é uma homenagem às mulheres, já que o personagem paga para passar noites observando-as e descrevendo-as liricamente. No entanto, o que se vê nessa novela é um protagonista que só considera a mulher enquanto carne, corpo físico capaz de excitar um homem. Eguchi só concebe as mulheres sob seu ideal de mulher frágil. Ir à casa das belas adormecidas não é um gesto bonito de um velho apaixonado pelo feminino, nem tampouco uma ação que decorre apenas do desespero causado pela solidão da velhice. A hospedaria existe e é frequentada por esses homens porque quem dorme é sempre uma pessoa do sexo feminino, em uma posição completamente vulnerável, sem nome, idade ou qualquer informação que a personalize, que seja jovem e que esteja despida, totalmente sedada, em níveis máximos de fragilidade em relação ao sujeito que a contrata. É de se deduzir que as mulheres que se submetem a essas condições só o fazem porque não possuem outras alternativas ou meios de sobreviver. Tudo na casa das belas adormecidas é arquitetado de modo a garantir a manutenção das relações de poder do homem sobre a mulher, reproduzindo em microcosmo a dinâmica do mundo patriarcal.


A estalagem é um refúgio aos homens que recusam envelhecer, que buscam esquecer sua decadência, a aproximação da morte e a própria baixeza, pelo rebaixamento de um outro alguém. Na ausência de um narrador que julgue ou de um personagem que se oponha ao absurdo do que acontece naquela casa, o leitor fica muito próximo da perspectiva do protagonista, como um cúmplice. Esse procedimento pode gerar certo incômodo, mas é em geral muito perigoso, já que a imparcialidade narrativa fortalece a visão de Eguchi sobre o leitor, naturalizando suas atitudes, transformando o protagonista em um Humbert Humbert japonês, e as belas adormecidas em Lolitas. Sejam quais forem as origens da competência narrativa de Yasunari Kawabata na construção de A casa das belas adormecidas, o fato é que o livro do ganhador do Nobel de literatura é potente, perturbador e ardiloso. Repulsivo e sedutor na mesma medida, a violência velada poeticamente descrita em suas páginas transforma a leitura em um verdadeiro desafio moral.


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:




bottom of page