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MELHORES LEITURAS DE 2019



Segundo a contagem do Skoob, em 2019 eu li 96 livros. Pode ser difícil acreditar neste número, que parece impressionante em comparação a quanto costuma ler anualmente um brasileiro, mas a verdade é que para quem trabalha com literatura acaba sendo natural ler em grandes quantidades. A dificuldade real está em selecionar as melhores entre tantas boas leituras, e por isso eu acabo norteando minha escolha pela emoção, priorizando os livros que me despertaram sensações marcantes, tanto por suas formas quanto por suas premissas.


Neste post estão livros de prosa e de poesia que foram lidos por mim em 2019 e não necessariamente publicados neste ano, com exceção dos nacionais contemporâneos que terão uma lista exclusiva para eles, não porque sejam melhores ou piores do que esses, mas porque possuem particularidades que eu gostaria de respeitar – e destacar. Então, se você é um leitor que não costuma ler literatura brasileira mas se identifica com alguns dos volumes desta lista, dê uma chance para os livros que serão indicados na seleção de nacionais que sai em breve por aqui. As obras estão dispostas na ordem em que foram lidas durante o ano e não por preferência. Aquelas que já foram comentadas no LiteraTamy estarão com os links de acesso para suas resenhas. Vamos lá?


1. A VELOCIDADE DA LUZ, de Javier Cercas (Cia. das Letras, trad. Sérgio Molina)

Este foi o primeiro livro enviado aos assinantes da TAG Curadoria em 2019 e eu, que sempre quis ler algo do Cercas, fiquei ainda mais empolgada pela leitura diante da indicação do Carrascoza, autor que amo. Mesmo animada, eu não imaginava que fosse gostar tanto da leitura. A sensação de deslumbramento proposta pela estrutura narrativa deste livro é ímpar e eu defendo que ele é não só um romance, mas também um estudo do romance, a um só tempo. Excelente indicação para quem acredita que como contar uma história é tão ou mais importante do que a história em si. A resenha dele você confere aqui.


2. A VEGETARIANA, de Han Kang (Todavia, trad. Jae Hyung Woo)

Hesitei muito em adicionar A vegetariana à lista porque, embora não tenha propriamente me apaixonado por ele, sempre considero injustas as acusações de que ele não é um livro bom. Acho que esta hesitação foi justamente o que me levou a colocá-lo aqui. Para mim, trata-se de um retrato em três atos da desumanização de uma mulher que, constantemente oprimida, acaba liberando pelo corpo o surreal que habita seu interior, resistindo à vida encarceradora de sujeito do sexo feminino. Uma experiência de leitura perturbadora e bastante reflexiva. Também escrevi uma resenha sobre ele, aqui.


3. CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA, de Lúcio Cardoso (Civilização Brasileira)

Este livro me maravilhou de tal modo que até hoje fui incapaz de organizar minhas impressões sobre ele. Um romance extenso sobre a decadência de uma tradicional família burguesa brasileira que desmorona não por ataques externos, mas pelo declínio dos próprios alicerces, cada vez mais insustentáveis, em contraponto ao esqueleto impecável e surpreendente da narrativa. Livro essencial da nossa literatura, nele Lúcio Cardoso captura um retrato apaixonado e doído das inconsistências humanas, dos meandros irracionais do desejo e dos perigos de recalcá-lo, destacando as especificidades da formação mineira clássica dos personagens. Simplesmente fascinante – e com revelações que nos dão vontade de relê-lo imediatamente após terminarmos a primeira leitura.


4. O OLHO MAIS AZUL, de Toni Morrison (Cia. das Letras, trad. Manoel Paulo Ferreira)

O olho mais azul é um romance radical. Radical porque submerge até a raiz de problemas de ordem estrutural, tão arraigados que tornam alguns solos improdutivos a determinados cultivos. A partir da triste história de uma garotinha negra que sonha em ter olhos azuis para assim ser amada e considerada bela, Toni Morrison nos mostra que cavar esse terreno é muito dolorido, mas necessário para exterminar pragas e garantir que todas as sementes possam germinar, rompendo a superfície para respirar livres, como lhes é de direito. Gravei um vídeo sobre ele e você pode assisti-lo clicando aqui.


5. AS COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO, de Mariana Enriquez (Intrínseca, trad. José Geraldo Couto)

A tradição contística argentina é referência no mundo todo e, por isso, ao mesmo tempo em que muito se espera destes contos, grandes podem ser as decepções em relação a novos textos argentinos. Não é o caso da literatura de Mariana Enriquez. Ainda que possua, aqui e ali e como é de se esperar, alguma correspondência com o caráter fantástico dos textos cortázianos, por exemplo, o mágico de Enriquez é de natureza inédita. O terror social que ela imprime nos contos é bastante singular e nos deixa assombrados não só pelas histórias em si, mas também pela crítica lucidez com que ela as tece como testemunhos de uma realidade assustadora. Falei mais sobre ele aqui. Recomendadíssimo!


6. A NOITE ESCURA E MAIS EU, de Lygia Fagundes Telles (Cia. das Letras)

Considero este o melhor livro de contos da Lygia. Nele estão alguns dos textos que ela escreve com maior consciência de seu potencial literário, em pleno domínio das próprias técnicas e temas, e, como consequência, com uma liberdade que nos deixa também seguros (embora nunca acomodados) para passear pelos labirintos ficcionais que ela cria. Aqueles que o leem já conhecendo as obras lygianas anteriores ganham uma satisfação exclusiva, ainda maior, porque reconhecem em seus contos a renovação de certos pactos propostos pela autora paulistana no decorrer de sua trajetória literária. Gravei uma resenha entusiasmada sobre ele e você pode assisti-la aqui.


7. UMA NOITE, MARKOVITCH, de Ayelet Gundar-Goshen (Todavia, trad. Paulo Geiger)

Você já leu literatura israelense contemporânea? Acredito que Uma noite, Markovitch tenha sido minha primeira experiência neste campo e eu não poderia ter me encantado mais! Este romanção delicioso, sinestésico, repleto de imagens incomuns e permanentes, é acima de tudo um livro sobre o potencial da paixão. Ayelet Gundar-Goshen escreve de um jeito colorido, inocente e perverso de uma só vez, de modo a nos entreter tanto pelo enredo quanto pelo estilo narrativo singular. A autora explora a complexidade da personalidade humana que não se contenta com a dicotomia entre o bem e o mal, trazendo ao foco de seu quadro a vida de pessoas comuns em meio a grandes guerras. Também tem vídeo sobre ele no canal.


8. UMA MULHER PERDIDA, de Willa Cather (Ponto Edita, trad. Mauricio Tamboni)

Quem sofre mais com a expectativa: aquele que a nutre ou o objeto que a inspira? Quando se trata da imagem feminina, quem realmente sai perdendo com o desvio do estereótipo? Em Uma mulher perdida, Willa Cather constrói um excelente estudo da performance feminina e de suas reverberações sobre aquela que performa e sobre aqueles que assistem à atuação injusta do que se cobra das mulheres, sem o típico caráter fatalista que contribui à noção de que a mulher precisa sempre se sujeitar aos desejos alheios para evitar o sofrimento. A impecável edição de estreia da Ponto Edita traz, além do posfácio de Mark Robison, escritos extras de Cather, como sua correspondência com Fitzgerald e o excelente texto “Sobre a arte da ficção”, complemento que aprimora a leitura ao ponto de nos deixar fatalmente apaixonados pela autora. Falei sobre ele em vídeo — um dos livros que mais injustamente passou batido pela crítica em 2019.


9. DIAS ÚTEIS, de Patrícia Portela (Dublinense)

Tive uma experiência muito louca com Dias úteis. Recebi da Dublinense o arquivo em pdf do livro, antes que ele fosse publicado, para uma entrevista (que no final acabou não acontecendo, por minha culpa) com a autora portuguesa que estaria no Brasil, e imediatamente comecei a lê-lo. A formatação estava estranha no Kindle, o texto não era nada convencional em termos formais, tive que lê-lo em pé no metrô lotado, mas nunca me diverti tanto com as estranhezas de uma leitura. Portela dedica um texto independente do outro para cada dia da semana e explora todo o absurdo que pode caber nas vivências cotidianas e também na linguagem que as reconta. Ainda não pude escrever ou falar sobre ele, mas agora que tenho o exemplar físico mal posso esperar para relê-lo e finalmente indicar por aí essa oportunidade tão gostosa e singular de ler uma autora que genuinamente gosta de escrever – e divide esse prazer com seus leitores. Espero que um dia a prometida entrevista aconteça e eu possa me perdoar por ter perdido a primeira chance. Livro super recomendado!


10. AS ALEGRIAS DA MATERNIDADE, de Buchi Emecheta (Dublinense, trad. Heloisa Jahn)

Há tempos eu não me deparava com um livro tão empaticamente poderoso como As alegrias da maternidade. Quando mostra a vida da sua protagonista nigeriana, Buchi Emecheta me faz encarar de frente e por dentro os moldes de uma sociedade patriarcal que reserva às mulheres a condição de mãe ou nada mais, me desafia a não ultrapassar os limites entre a indignação e o respeito pela cultura alheia e me ensina a cultivar a paciência e a sensibilidade necessárias pra entender que não posso esperar do outro a atitude que eu tomaria, sobretudo quando esse outro experiencia o mundo por meios tão distintos dos meus. Este livro me deixou com mais raiva das injustiças do mundo, chateada pelo modo com que as mulheres parecem ser sempre as mais prejudicadas em qualquer organização social. Foi um livro que me fez pensar, e isso é um presente, porque pensar no outro antes de pensar em si é raridade, coisa boa de provar de vez em quando. Fiz essa leitura para o Clube de Leitura Plexi, cujos encontros mediei junto do meu amigo Humberto Conzo Jr. durante o ano, e gravei um vídeo sobre ele, que você pode assistir aqui.


11. DIAS DE ABANDONO, de Elena Ferrante (Globo, trad. Francesca Cricelli)

Em 2019 eu li toda a tetralogia napolitana, depois de ter tentado no ano retrasado e abandonado a leitura ao fim do primeiro romance. Ler os quatro livros como um romance só foi extraordinário. O segundo volume me envolveu decisivamente e hoje digo que nunca mais andarei por aí sem a presença de Lila e Lenu junto de mim. Mas eu também li Dias de abandono, livro avulso da Ferrante, e optei por ele como favorito por seu impacto tão forte quanto o da tetralogia, mas com tão poucas páginas. Sua protagonista, Olga, tem que lidar com as agruras do processo de reformulação da vida pós-término de um longo relacionamento ao mesmo tempo em que precisa cuidar dos filhos, do cachorro, se enxergar pela primeira vez mulher inteira, ainda que despedaçada. Elena Ferrante descreveu os dias de abandono como um golpe atrás do outro e me fez experimentar a sensação de queda solitária que pode tanto anteceder um baque fatal quanto uma explosão transformadora. Um livro que me fez (re)provar do gosto amargo e inesquecível das decepções amorosas, tão únicas e ao mesmo tempo tão semelhantes. Quem nunca se sentiu um pouco abandonado? Falei sobre ele lá no canal, neste link.


12. O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO, de J.D. Salinger (Todavia, trad. Caetano Galindo)

Adolescência não é um período fácil. É aquela fase de descoberta de nós mesmos e do que existe ao nosso redor, o momento em que nossa personalidade se forma ao mesmo tempo em que surge o espanto com tudo que há de belo e de errado no mundo. A gente se revolta com as injustiças do caminho, sai dos trilhos porque nem sabe direito para onde o trem está indo. Por vezes esse desajuste é lido como indisciplina, interpretado como mero exagero descabido. Muita gente acha que o Holden Caulfield, protagonista do mais célebre romance de Salinger, não passa de um desses aborrecentes chatíssimos, mimados, rebelde sem causa. Já eu o vi como um jovem que pela primeira vez encara a dor da perda, a humilhação do abuso. A depressão. A dificuldade de superar o passado e de enxergar um futuro que valha a pena. Sozinho. Eu tive vontade de ligar para o Holden e conversar com ele. Oferecer minhas mãos na hora de atravessar a rua, ajudá-lo no trabalho de apanhador no campo de centeio. Este livro mexeu muito comigo e eu falei um pouco sobre isso neste vídeo. Leia com empatia!


13. OS ANOS, de Annie Ernaux (Três Estrelas, trad. Marília Garcia)

O livro que mais me desarrumou em 2019. Sério, comecei a escrever sobre ele no final de outubro – e até hoje não consegui terminar. Para piorar, ele brecou todas as próximas resenhas que eu pretendia publicar antes de o ano acabar. Ainda assim (ou talvez justamente por isso), Os Anos é um dos livros que entra na minha lista de melhores com mais certeza. Ernaux se propôs a escrever uma biografia impessoal dos anos, assumindo as vestes de sujeito histórico, e conseguiu fazê-lo com êxito. Não vou me alongar muito para não correr o risco de travar novamente, mas esta é uma obra que eu recomendo bastante àqueles que gostam de ler livros que extrapolam as fronteiras dos gêneros e os limites do eu. Desconsertante.


14. OS FANTASMAS INQUILINOS, de Daniel Jonas (Todavia)

O único livro de poesia da lista é também o único livro de poemas de autor estrangeiro que li em 2019. Os escritos de Daniel Jonas cutucam o eu adormecido, abafado pelo eu aparente, manifestam o duplo que existe em cada individualidade. A união de moldes clássicos e abordagens modernas é o cerne da originalidade desse poeta-tradutor, que tanto entende das teorias poéticas quanto dos desassossegos humanos. Esses fantasmas inquilinos me assombraram de modo surpreendente e eu me tornei residência dessa poesia espectral que faz morada e ainda cobra aluguel. Tive a oportunidade de conversar sobre esta coletânea com o Daniel (que além de tudo também foi um dos jurados do Prêmio Oceanos) em sua última vinda ao Brasil e o resultado da nossa conversa você assiste aqui.


15. A NÁUSEA, de Jean-Paul Sarte (Nova Fronteira, trad. Rita. Braga)

Apesar de ter cursado Francês e estudado literatura francesa na faculdade de Letras, eu ainda não conhecia Sartre. Ele sempre – sempre – me chama nas prateleiras de bibliotecas, livrarias e sebos com O ser e o nada, mas eu decidi começar a lê-lo pelo seu primeiro romance, A náusea. Que decisão acertada! Um mergulho profundo mas seguro na obra do grande existencialista francês através dos diários de um protagonista que parece sempre chapado de alguma droga que potencializa a lucidez e os efeitos do real sobre o ser. Este livro me impeliu a prestar atenção em tudo o que existe, nas formas com as quais já me acostumei e que, por isso, podem perder contorno. A parte mais divertida disso tudo foi que terminei a leitura no céu: estava em uma viagem de avião e pude ver o mundo todo do alto, pequenininho. Juro que naquele momento me senti a maior das existencialistas.


Bem, essa foi a seleção dos meus melhores livros em 2019. Senti que faltaram não-ficção, editoras independentes, autores negros e mais poesia – e não por que devo algo a alguém, mas porque gosto de prezar pela diversidade daquilo que me alimenta. Quanto mais a gente experimenta do novo, mais a gente cresce, certo? Então fica aí a minha única meta de leitura para 2020: diversificar. Eu te agradeço por acompanhar o LiteraTamy até aqui e torço para que possamos continuar juntos pelos próximos anos. Enquanto isso, me diga quais foram as suas melhores leituras de 2019!


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo no canal do LiteraTamy:



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